Depois de libertado, Domenico Quirico diz que na Síria "a revolução perdeu a honra"

O jornalista italiano de 62 anos raptado por um grupo rebelde em Abril e libertado na semana passada relata os 152 dias de um cativeiro "desumano".

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Domenico Quirico fala aos jornalistas na noite em que chegou, com Pierre Piccinin, ao aeroporto de Roma ANDREAS SOLARO/AFP

Medo, fome e humilhações em pequenos quartos escuros de janelas fechadas sob um calor abrasador. Domenico Quirico viveu 152 dias em que foi tratado de forma desumana, conta ao seu jornal, o diário italiano La Stampa, depois de ter sido libertado, há dez dias. Sente-se “traído” por “uma revolução que se tornou propriedade de fanáticos e bandidos”. “A Síria transformou-se no País do Mal, a terra onde o mal triunfa”, diz.

Quirico foi libertado numa noite de domingo. O relato ao seu jornal, que o semanário britânico The Observer reproduz em parte, começa numa outra noite “doce como o vinho”, 8 de Abril, em Qusair, bastião dos rebeldes, a cerca de 30 quilómetros de Homs, norte de Damasco, quando ainda acreditava naquilo que o tinha levado à Síria.  

“Vim para relatar mais um capítulo da guerra na Síria. Em vez disso, seguiram-se 152 dias de cativeiro. Enfrentei duas execuções fingidas, o silêncio de Deus, da minha família e do mundo”, escreve. Sofreu com a fome e a falta de compaixão. "Estávamos presos como animais."

Chegou a Qusair, já devastada pela guerra, numa coluna dos rebeldes do Exército Livre da Síria e ao fim de um percurso feito no escuro por estradas controladas pelo regime. Estava com o professor belga Pierre Piccinin. Os dois foram raptados e libertados nos mesmos dias.

Os dois foram surpreendidos por homens de cara tapada saídos de duas carrinhas de caixa aberta, que os levaram para uma casa e os espancaram. Diziam trabalhar para a polícia do regime. Eram afinal fervorosos islamistas que às sextas-feiras ouviam sermões contra o Presidente Bashar al-Assad, conta Domenico Quirico. “A prova final foi quando foram bombardeados do ar. Era claro que tínhamos sido raptados pelas forças rebeldes.”

Não eram mais que um grupo de bandidos e não islamistas ou revolucionários. "O Ocidente confia neles mas aprendi a meu custo que estamos a falar de um novo e perturbante fenómeno na revolta: a emergência de bandidos ao estilo da Somália que, usam o islão e o contexto da revolução para controlarem pedações de território, extorquirem dinheiro da população, raptarem pessoas e encherem os bolsos", diz. “Na Síria, a revolução perdeu a honra", acrescenta numa entrevista ao jornal francês Le Figaro.

Nenhuma compaixão
O chefe era um autodenominado emir, Abu Omar, que várias vezes sorria perante a crueldade infligida sobre outros. Neste caso, sobre Domenico Quirico. Uma vez, “sentado como um lorde” e “rodeado dos seus combatentes” chamou o jornalista para se sentar a seu lado. E permaneceu impávido perante a súplica deste: “Pedi-lhe [que me emprestasse] o seu telefone, disse-lhe que os meus familiares provavelmente pensavam que eu estava morto e que ele estava a destruir a minha vida e a da minha família. Riu-se, e disse que não havia rede na zona. Não era verdade.”

Uma única vez, diz, ele e Pierre Piccinin foram tratados de forma humana: quando, devido aos bombardeamentos, tiveram de ser entregues, por uma semana, ao grupo Jabhat al-Nusra, “a Al-Qaeda da Síria”. “Foi a única vez em que fomos tratados como seres humanos. Davam-nos por exemplo da mesma comida que eles comiam”, conta. “São fanáticos que esperam construir um Estado islâmico na Síria e por todo o Médio Oriente. Mas em relação aos seus inimigos – e sendo brancos, cristãos e ocidentais, nós eramos seus inimigos – têm um sentido de honra e de respeito.”

Tentativas de fuga falhadas
Duas vezes tentou fugir com o professor belga, raptado pelo mesmo grupo. E duas vezes foram apanhados para serem depois violentamente castigados, mas não mortos. “O nosso valor para eles era como o de uma mercadoria. (…). Podem agredir-te mas não matar-te porque se acabam contigo não poderão vender-te", diz Quirico.

O jornalista veterano, de 62 anos de idade e acumulada experiência em cenários de guerra, acreditou que ia ser morto. Esse medo sentiu-o pelo menos duas vezes, quando o encostaram à parede com uma arma colada à cabeça. “Longos momentos seguiram. [Nessa situação] Sentimos vergonha de nós mesmos. Sentimo-nos zangados e com medo”, confessa. E quando o largaram (a ele e ao companheiro de sequestro) no escuro, junto à fronteira, e disseram para os dois caminharem. “Pensei que iam disparar sobre nós por trás. Estava escuro, era um domingo à noite, depois do pôr-do-sol. (…) Tinha a certeza de que nos iam eliminar. Eu tinha visto as suas caras, sabia os seus nomes. Mas nenhum deles usou a sua kalashnikov. Inshallah (se deus quiser), este era o momento da nossa libertação.”
 
 
 
 
 

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