A sombra da assinatura Tsai Ming-liang

Como é que se pode voltar a descobrir um cineasta sem sermos intimidados pela autoridade da sua assinatura?

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O realizador Tsai Ming-liang e os actores Lee Kang-sheng, Lu Yi-ching, Lee Yi-chieh e Lee Yi-cheng
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As actrizes Esther Garrel e Anna Mouglalis de "La Jalousie"
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a actriz Valeria Solarino, de "L’Intrepido"
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O realizador Gianfranco Rosi

Stray Dogs, que teve os aplausos dos indefectíveis de Tsai Ming-liang, não veio serenar angústias: como é que se pode voltar a descobrir um cineasta com a surpresa, o fogo da primeira vez?

 Há quem obste, e isso esta sempre em ruído de fundo, que, apesar de fulgores aqui e ali (por exemplo, 2006, I Don’t Want to Sleep Alone), o cinema do malaio repete um estilo para o reconhecimento dos festivais. Tsai tem afirmado em entrevistas que o cinema começa a desinteressá-lo, o cinema e as suas contingências. Sobretudo narrativas. Caminha disposto a fugir dele e delas.

Acometido de uma doença, sentiu que este podia ser o seu último filme e resolveu chamar as suas actrizes, Yang Kuei Mei, Lu Yi Ching, Chen Shiang Chyi, que talvez interpretem a mesma mulher que rouba os filhos a Lee Kang-sheng, o corpo e rosto que filma há vinte anos. Há planos em Stray Dogs (competição) que existem com a autoridade de uma assinatura. E há mesmo um, o final, que parece existir como desafio, competição com equivalentes de outros filmes e finais de Tsai.

Mesmo se o realizador faz intrometer o mundo infantil, explicitando o seu amor por A Sombra do Caçador, de Charles Laughton; mesmo se é comovente o rosto inchado pela idade e batido pela chuva daquele que foi o rapaz do cinema de Tsai, a obra dos anos 90, com Vive L’Amour à cabeça (Leão de Ouro em Veneza em 1994), permanece dourada, irrepetível — sobretudo quando os filmes recentes a repetem. O tal plano final é exemplo disso: como se a duração fosse a reafirmação de uma assinatura, incluindo lágrimas e respiração dos actores, e por isso sem necessidade de justificação ou de emoção — ou então a emoção é reencontrar a assinatura em cada um dos planos. Que tem existência autónoma. São planos (e motivos: a chuva, a ruína…) de Tsai

O que se passa, algures a meio de Intrepido, de Gianni Amelio (competição), não é propriamente uma traição ao espírito que até aí possuía o filme, mas anda próximo, é uma desistência. Amelio filma uma personagem, interpretada por Antonio Albanese, de um trabalhador cuja situação é precária até à última potência: substitui os outros no seu trabalho, quando eles não podem trabalhar; é um fantasma de existência ontologicamente ameaçada. Tudo se passa em Milão, no frio Norte. Essa relação entre o fantasma e a cidade, que não deixa de ser tintada com energia burlesca (logo, triste), retoma a avidez pelo real e pela fantasia que já esteve nos genes do cinema italiano. Mas às tantas Amelio conta uma “história de sentimentos”, com redenções no horizonte. O cinema e a sua ferocidade, então, envergonham-se. E ausentam-se.

A sensação, com outro italiano, Sacro GRA, é que Gianfranco Rosi não conseguiu encontrar o filme. Depois de ter conquistado prémios em secções paralelas de Veneza com Below Sea Level e El Sicario Room 164, estreia-se na competição principal. Com a proposta de um urbanista, a primeira vez que um filme não nasce de uma ideia sua: o objecto é o Grande Raccordo Anulare (GRA), 64 quilómetros de autoestrada, 31 saídas, um anel de 21 quilómetros de diâmetro à volta de Roma. Foram seis meses de investigação antes de filmar, em que procurou as histórias. Mais frustrante, então, é constatar que falha a relação das personagens com um espaço. Por isso é que às tantas começa a multiplicar perspectivas da GRA: como que para forçar um território em figuras que entretanto já ficaram perdidas num man’s land sem mistério.

Ao ver La Jalousie, de Philippe Garrel (competição), lembramo-nos do que alimentou a fantasia de um cineasta como Bernardo Bertolucci nos anos 60/70: dar entrevistas em francês, porque o francês era a língua do cinema, quando o cinema era a preto e branco. Pode ser que o italiano Bertolucci, presidente do júri, morra de amores por este filme e pelo seu irreprimível onanismo. Pode, também, acontecer que o narcisismo de Louis Garrel — o trintão que deixou a mulher e que foi deixado pela amante e se tenta suicidar como quem faz uma citação culta — provoque reacções exasperantes.
 
 

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