Prémio António Champalimaud de Visão 2013 para instituições nepalesas

Nas últimas três décadas, o Nepal viu os casos de cegueira diminuírem gradualmente graças ao trabalho de quatro instituições que, nesta quarta-feira, levam para casa o prémio português de um milhão de euros.

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Ram Prasad Pokhrel, Sanjay Kumar Singh, Salma Rai e Sanduk Ruit vieram a Lisboa receber o prémio Enric Vives-Rubio
O Prémio António Champalimaud de Visão foi lançado em 2006
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O Prémio António Champalimaud de Visão foi lançado em 2006 Rui Gaudêncio (arquivo)

Em 1981, existiam apenas sete oftalmologistas para 15 milhões de nepaleses. A cegueira afectava cerca de 117 mil pessoas (0,84% da população) devido à pobreza, má nutrição e falta de acesso a cuidados de saúde. Era este o cenário que se vivia no Nepal. Mas passadas três décadas, a cegueira afecta 93 mil pessoas (0,35% da população), em 26 milhões de habitantes. Hoje, mais de 500 pessoas trabalham na saúde oftalmológica, em hospitais e centros de tratamento espalhados pelas 14 zonas administrativas do país.

Grande parte desta melhoria deveu-se ao trabalho de quatro organizações não-governamentais: o Nepal Netra Jyoti Sangh, o Instituto Tilganga de Oftalmologia, o Programa de Cuidados Visuais da Região Leste e o Instituto Visual de Lumbini. Nesta quarta-feira, estas instituições receberam o Prémio António Champalimaud de Visão 2013, na Fundação Champalimaud, em Lisboa, no valor de um milhão de euros pelo “trabalho humanitário e clínico” e pelo empenho “no combate a um flagelo preocupante num país em que as doenças da visão são uma catástrofe social”, lê-se num comunicado da fundação. O prémio vai ser dividido equitativamente pelas quatro organizações.

O ano-charneira na luta contra a cegueira no Nepal, causada principalmente pelas cataratas, foi 1981. Nesse ano, com ajuda de dinheiro estrangeiro e helicópteros do Canadá, uma equipa andou a rastrear a população nepalesa, região após região, nos 147.181 quilómetros quadrados que perfazem o Nepal – um país que tem uma vez e meia o tamanho de Portugal, mas está apertado entre os dois gigantes asiáticos, a Índia e a China. “Com os helicópteros, fizemos este rastreio para todo o país e ficámos a conhecer a magnitude da cegueira do Nepal”, explica ao PÚBLICO Ram Prasad Pokhrel, médico oftalmologista, que esteve na génese do Nepal Netra Jyoti Sangh (NNJS), em 1980, também conhecida por Sociedade Nacional para os Cuidados Visuais Completos. Hoje, com 76 anos, é o patrono da organização.

Com o apoio da Organização Mundial da Saúde e de organizações não-governamentais – como a Seva Canadá e Seva Estados Unidos, que surgiram no rescaldo da erradicação da varíola, quando se compreendeu que a cegueira era um dos mais graves problemas de saúde que poderiam facilmente tratar-se ou evitar-se –, Ram Prasad Pokhrel ajudou a criar um programa para erradicar a cegueira no seu país.

Na década de 1980, os grandes desafios no combate da cegueira eram a falta de infra-estruturas e de recursos humanos, o manpower, como lhe chama Ram Prasad Pokhrel, que antes de voltar para o Nepal em 1971, aos 34 anos, esteve dez anos em Inglaterra a aprender o seu ofício. Na altura, interrogava-se sobre o que fazer à sua vida, se deveria voltar para a terra natal para tentar resolver os problemas médicos do seu país, ou manter-se no mundo ocidental.

Passados 42 anos do regresso ao Nepal, o panorama do país é bastante diferente. Após o rastreio nacional de 1981, o plano de combate passou pela formação de profissionais como médicos e paramédicos na área de oftalmologia e, ao mesmo tempo, pela construção de hospitais e de centros médicos em cada zona do Nepal. Para isso, houve uma política captar a ajuda internacional.

"Cada zona do Nepal era apoiada por um país. O Japão ficou com uma zona, a Holanda com outra…”, conta o médico. Em cada zona, o país-padrinho construiu um hospital ou um centro de tratamentos e formou pessoas. “Assim que cada estrutura ficou pronta, os nepaleses tomaram conta da gestão destes centros”, explica Ram Prasad Pokhrel. Agora, o plano da NNJS, que funciona como chapéu para os hospitais e institutos que diariamente lutam pelo direito à visão naquele país, é baixar ainda mais a cegueira, para 0,2% na população. “Estamos muito satisfeitos com este prémio. Com o dinheiro, podemos criar um novo centro de tratamentos em Katmandu [capital do Nepal] e ajudar a erradicar a cegueira em locais mais remotos.”

Operação a sete euros para os mais pobres
Parte dos Himalaias estão no Nepal, por isso o país tem uma topografia acidentada. Apesar de existirem hoje 14 hospitais e 50 centros de oftalmologia, há muitas pessoas cegas ou com problemas de visão que continuam sem conseguir dirigir-se a um destes centros.

Salma Rai, médica e directora do Instituto Visual de Lumbini, conhece bem esta situação. Este instituto nasceu em 1983 com apenas duas salas e um oftalmologista, na região ocidental do país, junto da fronteira com a Índia. Hoje trata anualmente cerca de 35.000 pessoas com cataratas, muitas delas provenientes do país vizinho, além de formar oftalmologistas e assistentes. Mas continua a fazer missões em aldeias remotas sem acesso a um centro de cuidados oftalmológicos.

“Escolhemos uma região no país, publicitamos a nossa visita com uma semana de antecedência. A equipa faz uma avaliação dos doentes e, naqueles em que identificamos cataratas, operamo-los lá”, explica-nos Salma Rai. A médica, de 40 anos, nasceu em Baglung, uma vila no meio do país a 1000 metros de altitude e a 275 quilómetros a oeste de Katmandu. Na altura, as mulheres não costumavam ir à escola, mas o pai de Salma Rai fez questão que ela fosse educada e estudasse medicina para ajudar a tratar os pobres de Baglung.

“Algumas pessoas caminham durante dois ou três dias até aos nossos acampamentos”, conta Salma Rai. “Vi pessoas com cegueira bilateral, cegas há dois, três, talvez sete anos. A vida deles é horrível, isto é um fardo social para aquelas famílias, há sempre alguém que tem de tomar conta destas pessoas.”

O Instituto Visual de Lumbini tem apoio de várias organizações internacionais, e agora também conta com algum financiamento do Governo. Com o dinheiro do prémio, a médica quer fazer um centro de tratamento para crianças e apostar na investigação científica. “O prémio é fantástico, podemos usar o dinheiro nas pessoas com necessidades.”

Os outros dois casos de sucesso são o Instituto Tilganga de Oftalmologia e o Programa de Cuidados Visuais da Região Leste. O primeiro serve a região do Vale de Katmandu, bem como as populações de locais montanhosos mais remotos. O segundo envolve dois hospitais: o Hospital Visual Sagamartha Choudhary, que fica em Lahan, na região Leste do país, já perto da fronteira com a Índia; e o Hospital Visual de Biratnagar, a segunda maior cidade do Nepal, que fica a 140 quilómetros a leste de Lahan, também perto da fronteira.

O hospital de Lahan, uma zona mais rural, foi o primeiro a nascer, em 1983, numa altura em que “não havia electricidade, nem gerador no hospital”, conta-nos por sua vez Sanjay Kumar Singh, médico e director Hospital Visual de Biratnagar, criado em 2006. Hoje, estes dois hospitais tratam 100.000 cataratas por ano, cerca de 70 a 80% dos doentes vêm da Índia. Aqueles que têm pouco dinheiro pagam pela operação apenas sete euros.

Na cerimónia da entrega do galardão, o Presidente da República Cavaco Silva, considerou que graças a este prémio, o bem que estas organizações estão a fazer pela saúde oftalmológica dos nepaleses “levará, de algum modo, a marca de Portugal”.
 
 
 
 
 
 

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