A insubordinação do sentido

“O Mundo num Segundo”, de Bernardo Carvalho e Isabel Minhós Martins, e “Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar/Corre, coelhinho, corre”, de Bernardo Carvalho, desafiam a capacidade de interpretação do leitor

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Planeta Tangerina

Existe, dentro do possível, uma cumplicidade imperfeita entre a palavra e o objecto. Quando esse objecto é representado por um desenho, a complexidade acentua-se, pois existe, assim, uma representação plural daquilo que é visto.

O Mundo num Segundo” (Planeta Tangerina), de Bernardo Carvalho e Isabel Minhós Martins, e “Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar/Corre, coelhinho, corre” (Planeta Tangerina), de Bernardo Carvalho, desafiam a capacidade de interpretação do leitor. Neste caso, do leitor ainda criança.

Bernardo Carvalho teve a capacidade de explorar características inerentes ao formato livro que, por norma, não são exploradas.

“Olhe, por favor, não viu uma luzinha a piscar/Corre, coelhinho, corre” não tem contracapa. Em rigor, o livro tem duas capas referentes a duas histórias distintas. A história está dependente da forma como se pega no livro. Há, desde o princípio, uma “insubordinação” do sentido. Ao folhear, percebemos que a mesma imagem pode ser contada de diversas formas. A criança é incentivada a interpretar a imagem, sem recurso ao alfabeto, e a contar o que apreende da sintaxe tão flexível como é a de uma pintura. E é disso que se trata. Bernardo Carvalho manipula o espaço e o tempo. A interpretação é muito mais aberta, pois o olhar, na apreensão do sentido, vagueia na imagem. A interpretação de um quadro obriga a uma observação diferente da que é pedida numa gramática vinculada ao alfabeto.

O tempo também pode ser moldado. A história não tem de ser contada no passado. O “era uma vez” pode ser preterido. A história tanto pode ser contada no presente como no futuro. A não-existência da frase liberta o sentido. A criança não tem conhecimento extrínseco dessa estratégia, mas isso não impede que ela tenha prazer na leitura . O mesmo livro, a mesma imagem, outra história. E outra. E outra.

Já “O Mundo num segundo” apresenta desafios diferentes. As imagens de Bernardo Carvalho e o texto de Isabel Minhós Martins não utilizam a evolução diacrónica como característica indispensável ao desenrolar de uma história. O tempo da narrativa é “congelado” num só segundo. A partir da suspensão do tempo, os autores apresentam diferentes factos, sempre dentro desse mesmo segundo, em diferentes pontos do Globo. A transversalidade do tempo permite a composição da narrativa através de acções, em sítios diferentes, mas exactamente no mesmo tempo.

“O Mundo num segundo”, premiado com “Prémio de Melhor Livro Infantil 2012”, pelo Banco del Libro (Venezuela) e finalista da 2ª edição do “CJ Picture Book Festival da Coreia do Sul” propõe ao leitor o dom da ubiquidade.

A Literatura, esse milagre da Linguagem, renova-se na indomável imaginação e na limpidez da voz de uma criança. Tudo é por ela concretizado. E isto é o mais importante destes dois livros: A criação de histórias na mente da criança, leitora e recriadora do texto.

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