Duas Harleys, duas praças: a Europa em duas rodas

Uma viagem: era fim de tarde e a mesma luz velada voltava novamente, alongando sombras nas fachadas deste conjunto e suspendendo o tempo, antes do cair da noite

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Passavam poucos minutos das cinco da manhã e estava um frio tremendo para uma madrugada de julho. Testo o peso da carga balançando ligeiramente a moto de um lado para o outro e escuto atentamente o som profundo das panelas de escape da minha Harley. Soa perfeito e imagino que ecoe pelos vales, à medida que eu e o Victor Vilaça vamos percorrendo o território e que o nascer do dia traz consigo uma outra luz. O Minho já ficou para trás.

Depois chega Espanha e com ela as planícies da Rioja. Tínhamos um plano a cumprir: chegar a Bielsa – último refúgio espanhol antes da fronteira com França, já a meia-encosta dos Pirenéus – no final do primeiro dia. Mas chegámos tarde, apesar da cadência certa de andamento. Já era noite plena.

O início do segundo dia de viagem ficou, desde logo, marcado pela entrada em solo francês. Em Grenoble, estão António e Ana Maria que, gentilmente, nos cederam a sua casa como ponto de abrigo. A separar-nos estão mil quilómetros de estrada. Atravessamos as regiões altas de Languedoc-Roussillon – uma referência no nosso imaginário –, percorremos Toulouse e parámos em Rodez para tirar uma foto à cidade construída no cume de um morro e que se exibe para nós, do outro lado do rio, como um pavão.

A partir daqui a estrada seguida foi admirável. Caminhávamos para o fim de tarde e a luz impunha um deleite impressionante sobre a paisagem. Lembro-me de olhar para trás e ver o Victor varrer o horizonte de um lado a outro, tentando absorver o mais que podia, tal era a impressão da qualidade cénica do trajeto escolhido. Olhei também, e respirei o mais que pude, inalando um ar fresco pejado de odores de pinhais e de erva de pasto, que crescia em campos que pareciam não ter fim. Depois chegamos a Puy-en-Valey. Daí até Valence andamos sem parar, antes da chegada a Grenoble, já com o cair da noite.

Para o primeiro dia do mês de agosto estava agendada a chegada a Itália, devidamente assinalada com um encontro com a organização de Cidade Europeia do Desporto de Alba. A separar Grenoble da pequena cidade da região de Piemonte encontra-se a Rota de Napoleão. É um daqueles caminhos em que o trajeto convida às duas rodas e a tempo suficiente de fruição, fruto da quantidade de vezes que o recorte da natureza e dos hábitos e saberes da permanência humana nos impuseram paragens sucessivas.

É então chegada a hora de partimos em direção àquele que viria a ser o último destino da primeira semana de aventura. Com todas as características de uma cidade histórica italiana, Cremona é uma revelação: largos admiráveis, ruas sinuosas, casarios lindíssimos e uma relação de proximidade com o majestoso Pó. Mas tem, sobretudo, uma das praças mais bonitas do mundo: a D’Uomo. Quando lá entrei não vinha preparado para tal majestosidade. Rendi-me imediatamente à medida que o espanto se rasgava no rosto e os olhos procuravam abarcar tudo.

Sosseguei a curiosidade e fiz a diagonal da praça até ao Bar Portici, do lado oposto. Sentei-me, pedi uma água e coloquei-me de frente para o conjunto: torre sineira, catedral e batistério. E contemplei. Como quem não vai a lado nenhum e tem o privilégio de poder esbanjar tempo. Aqui, impõe-se que isso seja feito. Era fim de tarde e a mesma luz velada voltava novamente, alongando sombras nas fachadas deste conjunto e suspendendo o tempo, antes do cair da noite. A cerca de 2.500 quilómetros de distância, reencontramos no D’Umo o encanto da praça do Toural, em Guimarães, da qual partimos há cinco dias, rumo à aventura e descoberta da alma dos lugares!

Esta crónica foi escrita ao abrigo do novo Acordo Ortográfico

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