O País das Maravilhas

Vai-se ao supermercado, volta-se e tem-se no para-brisas do carro, um panfleto colorido da Remax com letras gordas a dizer: Compre casa … sem dinheiro!

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Kitato/Instagram

Não pensava escrever tão cedo. Aproveitar o Verão sem me encantar com as maravilhas que Portugal tem a oferecer, mas é tarefa árdua. Vai-se ao supermercado, volta-se e tem-se no para-brisas do carro, um panfleto colorido da Remax com letras gordas a dizer: Compre casa… sem dinheiro!

Confesso que desfolhei. O português é curioso. Acabada a minha leitura, fico espantado: nem uma casa, moradia, apartamento, terreno que corresponde-se à capa do papel. Isto é interessante, porque mostra-nos vários aspetos:

1) As empresas de mediação imobiliária julgam que o povo não sabe ler, ou sofre de défice de interpretação linguística

2) Julgam, só podem julgar, que o povo que não padece dessa mesma falta de qualidades, não se questiona ou mesmo indigna, depois de perceber que se trata de publicidade enganadora, provocadora e desrespeitosa

3) E talvez o mais interessante; que a maneira de cativar o potencial investidor/comprador ‘tuga’ não é através de profissionalismo, mas de afirmações sensacionalistas que têm por base a tese: não precisas de mexer nos bolsos, assina aí e nós tratamos de tudo.

Como a democracia, que já há muito foi comprometida pelo financeiro especulativo, também o português o é. E não é só comprometimento, é também a questão da dignidade de individuo em si, como ser racional, capaz de observar e compreender o que o rodeia.

Mas com isto uma pessoa pode lidar. O avô está quase a morrer sem dinheiro para medicação, o que é um panfleto insignificante?

Hora após-jantar, família a dispersar, e comentador político a falar. Um dos tantos. Um dos mais antigos e respeitados pela opinião pública. Fala dos contratos swap e da senhora que sabe, mas não é bem assim, que sabe mais um bocado do que ontem, mas não era relevante ou suficientemente importante etc. Tenta colocar a situação da mesma como algo ultrapassável de gestão possível. Claro está que pelo meio do discurso vai realizando algumas críticas objetivas e de aparência acutilante, mas que logo se amena. As pessoas acenam afirmativamente com a cabeça. O senhor sabe. Até põe as mãos no fogo pelo grande Rui Machete.

Honestidade proclama-se, mas não se apalpa. Como subida económica de armadura sebastiana que não chega. E até o nevoeiro já custa a aparecer.

Nisto eu fico maravilhado. São demasiadas notícias do campo do fantástico a saírem à tona na nossa comunicação social. Às vezes até espero que algumas sejam daquelas invenções manhosas, mas não. Na desgraça política portuguesa, as notícias são mesmo concretas, factuais, os ministros chamados a depor e a engasgarem-se, secretários de Estado do Tesouro, comprometidos à partida, vice-primeiros ministros a escolherem gabinetes em palácios, mas sempre atentos à contenção de custos. Até vai partilhar o espaço com outro secretário de estado. Coitado.

E nisto a admiração recai à utilidade das juventudes partidárias. Sendo uma boa parte de políticos dirigentes, indivíduos com passado associativo-político de variados anos; eu, apartidário, leigo ignóbil nestes assuntos, pergunto-me se no meio de apertos de mão, palmadas, colar cartazes, decorar hinos, oferecer uns jantares etc. se não se aprende naqueles meios, uma questão primária, a meu ver: não se alega funções de destaque a profissionais de historial duvidoso. Não se coloca arma nas mãos a soldado amputado. As biografias e os currículos esventram-se até à última gota. É ingénuo, e de modo rude, que se espera que os jornalistas não descubram podres tão mal enterrados. Chega a ser uma descredibilização do emprego dos mesmos. E sim claros, muitos estarão comprometidos, atados e ajoelhados, mas espera-se que haja sempre uns poucos, que mantêm o cerne intacto.

É como disse, fico maravilhado. Vá ao supermercado, sente-me no sofá, vá à rua, não importa, Portugal é O País das Maravilhas. Ou talvez seja eu a exagerar com o meu sentimento patriótico. Fiquemo-nos pelo "nonsense".

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