O Zé Povinho e as direcções

Pois bem, descansa três anitos. Sim, sim eu prometo que a tua rua é alcatroada, e haverá mais um poste de iluminação à tua porta

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sualk61/Flickr

Passo à direita, passo à esquerda, passo à direita, passo à esquerda. Não muito, não demais, cuidado com os extremos, o centro é ameno, fica aí Zé. Quieto e vota. Exercita o músculo da democracia. — Já está? Pois bem, descansa três anitos. Sim, sim eu prometo que a tua rua é alcatroada, e haverá mais um poste de iluminação à tua porta. Então está claro, até parece que não me conheces. Aperto de mão, palmada nas costas. O Zé depois das suas oito horas de trabalho diárias vai à taberna da aldeia. Das últimas que ainda resistem ao tempo e à burocracia.

O Papa argentino passeia. Ou passeou, ou passeará? Tanto faz. Há as multidões na televisão e o Zé gosta de ver aquele entusiasmo desenfreado espalhado pelos milagres da globalização. A água lustral falta nas igrejas, mas a antena está bem afinada. Em amostras temporais quase paralelas é descoberta na Turquia, uma Bíblia com cerca de 1500 anos geradora de controversa, pela especulação da existência do Envangelho de Barnabé. O Zé não entende completamente, mas viu a notícia pela Internet e pelas televisões. No noticiário, até foram filmadas de relance várias praças turcas, nenhumas sujas de sangue. É bonito ver como tudo passa.

Ainda há o bebé! É preciso saber o peso dele, o nome, o aspecto. Afinal está no pódio da sucessão. Não é qualquer ser que alcança tal coisa. Surge um em décadas. A mãe é gira, reparam os homens ao balcão.

No regresso a casa avista o maluquinho da rua, sentado no degrau de sempre. Qual será o devaneio desta vez? Cuspir para um lado, cuspir o outro, um lado, outro, esquerda, direita. Molha o bico de tempo a tempo e volta à carga. Este povo anda demente, pensa Zé.

Liga-se a TV enquanto a mulher não chega a casa e canta-se o hino. É importante reacender o "geist" dentro de nós. O filho veio a correr do quarto, alertado pelo barulho que anunciava o pai. Não se sabe quem o foi buscar à escola, mas estava alegre.

— Aprendi hoje duas palavras pai. Legitimidade e censura. O homem movimentava a cabeça em movimentos aleatórios de modo a visionar o ecrã por inteiro.

— Ah e pai, aprendi que a palavra censura não é obrigatoriamente redutora. A professora até nos deu exemplos de conjugações e articulações, como ela diz, com outras palavras, ou termos ou lá o que é, que dá logo um sentido particular …

— Que estupidez, vejam lá. Desde tão cedo a entupirem as crianças com coisas dessas. Sempre me pareceu, desde o início, que tenho de ir à escola falar com essa mulher. Entretanto, e muito de vez em quando, vai-se falando de biografias amputadas em parcelas omitidas. Os homens são importantes, mas não as suas vidas? É outro dia e o Zé continua a percorrer o trilho ao centro, tem medo do escuro das margens. O percurso vai novo, fresco. "E a professora vai ouvir das boas".

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