"Incompetência" do Paquistão permitiu "acto de guerra" que levou à morte de Bin Laden

Inquérito lançado em 2011 pelas autoridades paquistanesas resultou num relatório agora divulgado pela Al-Jazira. Documento mostra como o país deixou escapar Bin Laden, capturado numa missão dos EUA sem o conhecimento do Paquistão.

Foto
Osama Bin Laden viveu no complaxo fortificado de Abbottabad entre 2005 e 2011 Akhtar Soomro/Reuters

Osama bin Laden vivia numa casa de Abbottabad, a poucas dezenas de quilómetros da capital do Paquistão, Islamabad, quando uma missão secreta de fuzileiros da Marinha dos Estados Unidos sobrevoou o complexo antes de o atacar e matar Bin Laden e quatro outras pessoas, sem o conhecimento das autoridades do país.

O relatório de uma comissão de inquérito criada pelo Governo de Islamabad para tentar responder a alguma questões sobre a sua morte recomendava que as suas conclusões fossem tornadas públicas. O documento foi revelado, não oficialmente, mas pela estação Al-Jazira, com base no Qatar.

Amal e Abrar al-Kuwaiti eram duas das pessoas que viviam refugiadas com o líder da Al-Qaeda. Amal era a mais nova das três mulheres; as outras eram Sharifa e Khaira. Abrar-al-Kuwaiti era o braço direito de Bin Laden, um dos seus dois homens de confiança, que estiveram com ele até ao fim, também descritos por mensageiros ou guarda-costas. Terá sido porque conseguiram localizar Abrar al-Kuwaiti que os americanos souberam onde se escondia Bin Laden.

O documento, revelado esta segunda-feira, apoia-se em testemunhos de 200 pessoas, entre os quais os próprios familiares do líder da Al-Qaeda e responsáveis paquistaneses na reforma ou no activo, e tenta identificar as condições que permitiram que Bin Laden estivesse quase uma década incógnito no Paquistão e que os Estados Unidos perpetrassem “um acto de guerra” – como o relatório da comissão classifica o raide dos SEAL – para a sua captura.

Nas suas revelações, a investigação de mais de 330 páginas, da responsabilidade de um juiz sénior do Tribunal Supremo, mistura pormenores da vida de Bin Laden, quando andava fugido, e conclusões de que os Estados Unidos eram “demasiado capazes” perante um país - o Paquistão - que acumulava debilidades.

Cumplicidade em dúvida
Incompetência ou cumplicidade? O documento inclina-se sobretudo para a primeira hipótese quando fala do Governo do Paquistão, à qual acrescenta acusações de “complacência, ignorância, negligência e irresponsabilidade” na análise que faz aos acontecimentos que levaram ao ataque na noite de 1 para 2 de Maio quando Bin Laden foi morto. Mas diz não poder excluir a hipótese de cumplicidade, sem no entanto poder também confirmar que alguém responsável no Paquistão sabia que Bin Laden se escondia no país.

A comissão tinha, pelo menos, duas missões: perceber como “os Estados Unidos tinham conseguido levar a cabo uma missão militar hostil, de cerca de três horas, no Paquistão” e como os serviços secretos deste país “aparentemente não tinham ideia de que um fugitivo de notoriedade internacional [Osama bin Laden] estava a viver” em Abbottabad.

Bin Laden movimentava-se livremente no país do então Presidente Pervez Musharraf (entre 2001 e 2007), de onde continuaria a coordenar os ataques da Al-Qaeda. E estaria “até um certo ponto a planear operações futuras” do grupo terrorista, disse à comissão o chefe do ISI (Inter-Services Intelligence) do Paquistão, uma das testemunhas.

A Força Aérea paquistanesa não tinha instalado radares de média altitude entre Abbottabad e a fronteira e o Exército do país não considerava sequer uma incursão militar dos Estados Unidos como ameaça, acrescentou o director-geral das operações militares, também ouvido.

De Tora Bora a Abbottabad
Osama bin Laden entrou no Paquistão em 2002, vindo de Tora Bora no Afeganistão de onde teve de fugir depois da queda do regime taliban, em Dezembro de 2001. Mas só em 2005 se instalou com a família no complexo de Abbottabad. Vivia com as três mulheres e vários filhos, além dos dois guarda-costas que eram da sua extrema confiança - das mulheres e filhos destes.

Vivia inquieto na casa onde acabou por ser morto a 2 de Maio de 2011 e evitava sair à rua. Mas também há relatos, talvez relativos aos anos pré-Abbottabad, em que combatia o medo de ser perseguido circulando de carro.

Uma dessas vezes foi também uma das várias oportunidades perdidas pelas autoridades do Paquistão de o prenderem, logo em 2002, quando ainda vivia no Vale de Swat, depois de ter passado pelo Waziristão do Sul, Bajaur e Peshawar e antes de viver em Haripur. Seguia de carro com Abrar al-Kuwaiti quando polícias os mandaram parar, conta a mulher daquele que era o braço direito de Bin Laden, Maryam. É ela quem diz que Abrar al-Kuwaiti rapidamente resolveu a situação – não se sabendo se desviando a atenção dos agentes ou comprando a sua protecção.

Foi em Haripur que Amal, a mais nova das três mulheres de Bin Laden, deu à luz dois filhos numa clínica local. Para encobrir a sua identidade, também foi Abrar al-Kuwaiti que se lembrou de a fazer passar por surda e muda, para evitar ter de responder a perguntas dos responsáveis da clínica.

Depois disso, já em Abbottabad, a vivenda onde Bin Laden vivia era conhecida dos habitantes locais como “Casa Waziristão”. E estes não tinham por hábito fazer perguntas para não perturbar ordens tácitas de uma pacífica convivência com gangsters e senhores da guerra da região.

"Uma vida discreta"
Bin Laden costumava sair ao pátio para fazer exercício e era sobretudo aí que usava um chapéu de abas à cowboy para não ser identificado a partir de cima. Os seus familiares não saíam de casa. E ele nunca manteve, em Swat, Haripur ou Abbottabad, linha telefónica, ligação à Internet ou ao cabo, mas teve uma antena parabólica para ver a Al-Jazira. Isso só até ao dia em que, a poucos meses do raide à casa, a filha de um dos guarda-costas viu a fotografia de Bin Laden passar no ecrã e reconheceu-o como sendo o “Miskeen Baba” – ou “Pobre Tio” – que era como ela lhe chamava sem saber quem era. A partir de então, a televisão deixou de ser vista na casa onde as famílias ocupavam espaços e andares separados.

“Levavam uma vida muito discreta e viviam de forma extremamente frugal. Nunca se expunham ao olhar público. Tinham uma segurança mínima” – é uma das descrições no relatório agora revelado. Outra: “Osama bin Laden minimizava a hipótese de a sua presença ser identificada. O grupo restrito que o apoiava misturava-se facilmente com a comunidade vizinha. E ninguém os visitava, nem mesmo membros da Al-Qaeda” da confiança do líder.

Anos antes, em Swat, recebera a visita de um membro da Al-Qaeda, Khalid Sheikh Mohammad, que foi preso poucos meses depois no Paquistão. Isso precipitou a saída de toda a família e colaboradores de Swat. Seguiriam então para Haripur, antes de se instalarem em Abbottabad, onde estiveram seis anos, com Bin Laden a viver escondido e ao mesmo tempo à vista de todos.
 

Sugerir correcção
Comentar