A forquilha de Eugène Christophe

Leia aqui, agumas histórias que, provavelmente desconhece e que tornam o Tour uma prova tão especial.

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Eugène Christophe acompanhado pelos comissários a empurrar a sua bicicleta avariada DR

Ano 1913: Cento e oitenta corredores preparam-se para enfrentar as 15 etapas que irão ligar de Boulogne-Billancourt a Paris. Entre eles, está um velho conhecido dos franceses. Eugène Christophe conta já com dez anos de carreira e várias classificações honrosas nas principais provas nacionais. Paris-Tours, Paris-Roubaix, Tour, nenhuma é estranha ao especialista em cross ciclo-pedestre, disciplina na qual se sagrou sete vezes, seis das quais de forma consecutiva, campeão nacional.

Fora de portas, o percurso deste serralheiro coincidia com a vitória na Milan-San Remo, conseguida em condições dantescas – o francês teve de abrir caminho por entre a neve que, em certas zonas do percurso, tinha mais de 30 centímetros de altura. Apesar de ter ganho com uma hora de vantagem sobre o segundo, os críticos retiraram peso ao seu triunfo, apontando o facto de apenas quatro dos 63 ciclistas que iniciaram a clássica terem resistido.

Mas naquele Tour, sem saber, Christophe garantiria que o seu mérito fosse senso comum no pelotão. Nas primeiras cinco etapas, tudo corria dentro da normalidade. Nas últimas três, termina entre os dez primeiros. Na sexta etapa, mostra-se tão bem que chega a ser líder virtual no alto do Tourmalet.

Na descida, um carro que segue na caravana abalroa o corredor de Malakoff. Se “Cri-cri” sai sem mazelas, o mesmo não se pode dizer da sua companheira de viagem. Com a forquilha da bicicleta partida e com os regulamentos a proibirem a assistência aos corredores durante a etapa, o francês não tinha outra solução que não abandonar… Ou teria?

Determinado a não apanhar o carro vassoura e longe da meta (faltavam 75 quilómetros para Bagnères-de-Luchon), decide prosseguir o seu caminho a pé. No caminho encontra Maria Despiau, a quem pergunta onde pode encontrar a forja mais próxima. A noite cai. Percorre 14 quilómetros, ou seja, o resto da descida até Sainte-Marie de Campan, onde procura a de Joseph Bayle, que está a terminar a sua jornada laboral. Explica-lhe que é ciclista, que está a correr o Tour, que partiu a forquilha da bicicleta e que acaba de descer o Tourmalet a pé. Pede-lhe permissão para usar o seu material.

Diante de um “sim”, e sob o olhar atento dos oficiais da prova, que o acompanhavam desde o acidente e lhe recordavam permanentemente o artigo 45 do regulamento, Christophe começa a forjar o “garfo” que liga o guiador às rodas. No entanto, apesar dos seus esforços, depara-se com um problema inesperado: como accionar o fole da forja e trabalhar o metal ao mesmo tempo?

Cansado, mas lúcido, olhou à sua volta e descobriu Alexandre Tornay, um miúdo que tinha deixado as suas brincadeiras para ser espectador ocasional da empreitada. A ajuda valeu-lhe um minuto de penalização, um “castigo” que retribuiu com requintes de ironia aos comissários. Quando estes o questionaram sobre a hipótese de o abandonarem momentaneamente para ir procurar algo para comer, a sua resposta foi contundente: “Se têm fome, comam carvão. Sou o vosso prisioneiro, vocês são os meus carcereiros”.

Depois de 1h30 de trabalho e com quatro horas de atraso para o pelotão, Eugène Christophe está pronto para partir. Pela frente, até Bagnères-de-Luchon, tem ainda o col d’Aspin e o de Peyresourde, 12 quilómetros de subida com inclinações de oito por cento.

Mas o “velho Gaulês”, nome pelo qual ficou conhecido, terminará com 3h50 de atraso sobre o vencedor. E, apesar do seu incidente, não será o lanterna vermelha dessa etapa – 15 corredores acabaram depois dele, com o suíço Celidonio Morini a chegar com um atraso de 7h30. Em Paris, Christophe será sétimo na geral, a 14 horas do vencedor.

Aos 66 anos, 38 depois desse dia, o primeiro homem a vestir a camisola amarela, instaurada em 1919, regressou a Sainte-Marie de Campan para descerrar uma placa comemorativa da insólita situação, cujo centenário está a ser assinalado com a construção de uma estátua que reproduz o trabalho de reparação feito na forja.

Nela pode ler-se: “Aqui, em 1913, Eugène Christophe, ciclista francês, primeiro da classificação geral da Volta a França, vítima de um acidente com a sua máquina no Tourmalet, reparou na forja a forquilha da sua bicicleta. Ainda que tendo percorrido numerosos quilómetros a pé na montanha e tendo estado perdido diversas horas, Eugène Christophe não abandonou a prova que ele teria ganho, dando assim um exemplo de sublime vontade”.

 

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