A tortura dos números

A agricultura portuguesa percorreu um caminho significativo até aqui mas temos de ser mais ambiciosos.

Temo-nos tornado nos últimos anos numa espécie de Guantánamo das Estatísticas, levando ao exagero aquela velha imagem de que os números, devidamente torturados, dizem o que quisermos que eles digam.

De facto, pegando num assunto por um lado ou por outro é raro não termos nada de positivo a retirar, se assim for conveniente, ou então a criticar, se esse for o objectivo que quem analisa. E já se sabe, uma meia verdade bem suportada estatisticamente passa a verdade incontestável, muito difícil de rebater, sempre assim foi, sempre assim será.

Vejam-se as PPP, de acordo com o antigo PM ou foram herdadas ou foram responsabilidade do actual governo, opinião diametralmente oposta dos governantes presentes, que esgrimem no sentido inverso. E tudo isto com suporte estatístico irrebatível por detrás, como não podia deixar de ser.

Ora um sector em que se tem ultimamente verificado um desfilar de opiniões dissonantes é a Agricultura. O actual PR orgulha-se do trabalho que fez entre 86 e 94? Pois Miguel Sousa Tavares, secundado por Daniel Oliveira e muitos outros, acha exactamente o contrário e culpa-o pelo estado actual da Agricultura, que considera desastroso, muito diferente da opinião que a actual Ministra tem, que vê naturalmente muitas virtualidades no estado presente da Agricultura portuguesa.

E onde ficamos, quem tem razão? Estamos bem ou estamos mal? Depende naturalmente do que quisermos analisar, e com que intenções o fazemos, pois há espaço para tudo. É preciso ver de onde partimos (o que produzíamos em 1986), a evolução da produtividade (do trabalho e da terra), a taxa de cobertura das importações pelas exportações, o que produzimos agora, o benchmark com os outros países.

Pois bem, se quisermos fazer uma análise temporal, entre 1986 e 2010, vemos que passámos de uma produção de 4,5 mil milhões de euros para 7.9 mil milhões de euros, conseguindo-se tal aumento com menos de metade das pessoas a trabalhar na Agricultura (800.000 em 1986 para 390.000 em 2010), portanto mais do que duplicando a produtividade do trabalho, incremento que permitiu a manutenção do grau de auto-suficiência apesar do aumento de mais de 50% no consumo de produtos do sector (tudo dados Pordata). Isto é irrefutável.

De facto, fruto de opções de cultivo discutíveis ao longo do século XX, os terrenos explorados eram muito mais (menos 500.000 hectares entre 1986 e 2010), produzia-se até onde não valia a pena produzir, estando o país muito distante do óptimo económico, situação que aliada a uma evolução tecnológica (mecanização, genética vegetal e animal, regadio) sem paralelo se traduziu num incremento impar na produção agrícola do país.

Mas também é óbvio que a melhoria poderia ter sido melhor, pois partimos de uma base baixa (é bom relembrar o que era Portugal em 1986), e devemos também olhar para o que se passa nos outros países europeus, nomeadamente os nossos vizinhos, onde regra geral os indicadores são melhores do que em Portugal. Veja-se, por exemplo, a produtividade do trabalho portuguesa, que é 33% da espanhola, 19,6% da francesa, 18,7% da inglesa, 24,6% da italiana e somente 10,9% da holandesa (dados Eurostat, 2010), apenas para citar alguns exemplos.

E onde ficamos, estamos bem ou estamos mal? A verdade é que já percorremos um caminho significativo, e sem esse caminho ser percorrido nunca descolaríamos do estado de Agricultura incipiente que marcava o nosso panorama até há pouco tempo, mas um outro caminho bem maior está por percorrer, ou seja, olhando para o que os nossos congéneres europeus fazem é óbvio que temos de ser bem mais ambiciosos, temos de crescer (objectivo) a dois dígitos, temos de cultivar todos os terrenos produtivos, temos de trazer mais investimentos nacionais e estrangeiros para a produção agrícola em Portugal, temos de explorar as nossas vantagens comparativas, temos condições para tal, temos como nação de pôr mãos à obra.

As estatísticas são óptimas para quem gosta de opinar sobre tudo, dissertando sobre todas as temáticas como se de especialistas se tratassem, sendo os números a prova provada da razão que às vezes lhes falta. Não é raro vermos pessoas a opinarem num dia sobre assuntos desportivos, noutro sobre política, no dia seguinte sobre Caça e Pesca e a seguir sobre Macroeconomia e Astrofísica, naturalmente esquecendo detalhes e passando muitas vezes ao lado da verdadeira razão de ser dos temas, pois no final todos temos somente 24 horas por dia, e ninguém consegue assimilar tudo.

É sempre bom relembrar que Estatística não é Matemática, que a interpretação dos números é subjectiva e deve ser séria, caso contrário muito facilmente se cai no logro da manipulação, que a uns beneficia e a outros prejudica, como na imagem dos dois amigos que comem dois pães, dando-se o infeliz acaso de um comer sozinho os dois pães, tendo o outro estatisticamente comido em média um pão, embora na prática esteja à míngua.

Eng. Agrónomo e Gestor de Empresas

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