Islão para adolescentes

Revolvendo prateleiras à procura de um ‘aftershave’ baratinho, olhei para o lado e vi Samira (nome fictício, que não podia ser Maria). Larguei os ‘Axes’ por três longos segundos e pus-me a revolver memórias da “idade ‘Clearasil’”

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Lembro-me que nas partidas interescolares de andebol — isto no 9.º ano, 2005 —, Samira sobressaía em campo pela postura séria que mantinha em competição. “Atira-se à bola, parece um gato siamês”, como melhor descreveu uma amiga sua, na bancada. Fora do pavilhão, era a burca de Samira que a distinguia no recreio, ao balcão do bar, na fila da cantina. 

 

O lenço que recolhia impecavelmente o cabelo — que nunca ninguém da escola soube se era comprido ou curto, liso ou ondulado — era, como Samira dava a entender, o emblema muçulmano de que não abdicava. Porque das coisas do islão que azucrinavam o ocidente de o início do século XXI, muitas seriam mais ficção que realidade. 

 

“Tu podes, tipo, falar com rapazes à vontade? Não é como n’ “O Clone”, em que é ‘bué de’ lixado se uma rapariga árabe falar com um rapaz na rua?”. Samira lá satisfazia as curiosidades bem-intencionadas dos colegas. Com bom humor, porque as achava naturais: “Um belo “Clone” me saíste tu! Isso é descabido, é telenovela. Pelo menos, na minha família não é assim”. 

 

Às vezes, nos badalados intervalos em que trinta turmas corriam para a badaladíssima sala de alunos, dois ‘dreads’ costumavam provocá-la com “olha a bomba!”; insinuavam que, algures no cacifo, na ‘eastpak’ ou debaixo das vestes largas, Samira escondia explosivos para rebentar com os dois blocos da escola. Mas nem por isso nós e ela pausávamos o almoço: o clássico cachorro quente e o seu “molho-alaranjado-de-qualquer-coisa”, ao som do ainda mais repetitivo Daddy Yankee. Os cães ladravam, a caravana passava e a MTV continuava a despejar litros de ‘Gasolina’ naquela gaiola amarela. 

 

O que tirava Samira do sério tinha mais a ver com os problemas de físico-química. Ou a álgebra que foi equilibrar uma tela 40x40cm durante três quilómetros ao pedal em plena N125, tentando chegar ao Clube de Pintura em 15 minutos. 

 

Sabiam-se-lhe as paixonetas, mas nenhum namorado. Porque, apesar das desmitificações e lá no fundo do nosso imaginário mouro, Samira só namoraria com um rapaz recomendado pelo pai — o qual usaria turbante e barbas até ao joelho. 

 

Minuto 00:00:04; hipermercado, ‘aftershaves’. Com ou sem o carimbo do pai, Samira arranjou marido e — em dois meses, eu diria — serão três na sua casa. Não vi o tipo, mas ele estava no corredor: “Desculpa, Duarte, não estou sozinha. Não posso falar aqui. A sério, desculpa lá…”

 

A várias léguas dos tumultos, Samira vive a sua Primavera Árabe de um jeito diferente. Dizer que foi atraiçoada pelas suas crenças pode ser exagero. Assim como é exagerada a estilização da vida que a televisão vende. Mas a jovem que via “O Clone” mal sabia que a sua dúvida, afinal, até tinha algum cabimento. 

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