“Do Céu Caiu Uma Estrela” (“It’s a Wonderful Life”), de Frank Capra (1946)

Vejamos em paz este filme salvador. Apreciemos a arte de quem, já desaparecido, ainda hoje nos brinda com uma lição de autoconfiança, enquanto nos entretém

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Quem, nesta altura do ano e do Orçamento do Estado (rectificativo), não gostaria de receber notícias de uma vida maravilhosa? Melhor: quem, nesta época de sensação de falhanço colectivo, não gostaria de ser convencido de que a sua vida — passada a tentar conservar o emprego, a família e a casa e a defender-se da posição dominante dos bancos e dos pregadores do sistema socioeconómico norte-americano —, afinal, é maravilhosa? Foi por isso, aparentemente, que este filme de 1946, realizado por Frank Capra (de que já apresentámos aqui “Peço a Palavra”, com o mesmo James Stewart como protagonista), se tornou eterno e universal.

Imaginem — principalmente aqueles que se interrogam o que fazem aqui, quem os abandonou, de quem se esqueceram, tal como o faz Paulo de Carvalho na histórica canção— o que seria poder ver o impacte que a nossa repentina não-existência teria sobre a realidade que conhecemos, isto é, poder medir, da forma mais terrível e arrepiante, tudo aquilo e todos aqueles que a nossa presença influenciou, de uma maneira ou de outra. Se digo “terrível” e insisto com “arrepiante”, é pensando em quantos de nós resistiriam à exclusão máxima, à rejeição última, à desconstrução pessoal fulminante de não existirmos fora de nós, de não haver vestígios da nossa passagem por escolas ou empresas ou igrejas ou cafés ou o mais pequeno sinal de reconhecimento por parte dos amigos nem dos familiares.

Conduzindo-nos ao longo das rectas iniciais e das curvas e contracurvas mais tardias desta fantasia fascinante vão o mortal honesto e idealista George Bailey (James Stewart), que só queria ver o mundo, mas que fica na sua cidadezinha a defender a comunidade, os amigos, a família e a si mesmo da acção predadora de um milionário local que personifica “a ganância dos mercados” (Lionel Barrimore), e o inocente e doce anjo Clarence (Henry Travers), um enviado especial do Céu com a missão dupla de proteger George e de receber as suas asas.

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Se há filmes salvadores, este é um deles. Porque nos faz ter esperança, acreditar e meditar de forma mais benigna sobre aquilo que há-de vir, contrariamente a um presente desanimador em que nos põem a financiar a desgraça geral. Afinal, existe um mundo — nem que seja o pequeno mundo das pessoas que nos apreciam pelo que somos — em que podemos valer muito mais do que o nosso peso em impostos. É uma outra terra, que aprendemos a ver depois de assistirmos, em silêncio, à projecção do filme das nossas vidas nos olhos dos que nos importam, daqueles a partir de quem nos fazemos nós, enquanto de nós se fazem eles.

Vejamos em paz este filme salvador. Apreciemos a arte de quem, já desaparecido, ainda hoje nos brinda com uma lição de autoconfiança, enquanto nos entretém. É como se estivéssemos a fazer "tricot" ou "crochet" enquanto ouvimos uma história, e, no fim desta, em vez de nos sair uma manga de camisola ou um quadrado de colcha, nos saísse um coração cheio daquela paz do Natal que, mesmo apropriada pelo comércio, parece ser da melhor que se conseguiu arranjar. Oxalá a possamos celebrar antes que algum triunvirato preclaro de novos dominantes descubra, em laboratório privado, que está claramente acima das nossas possibilidades.

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