Governo autoriza Beatriz a induzir parto de feto inviável, depois do Supremo ter negado aborto

Supremo Tribunal do país proibiu aborto. Mas a ministra da Saúde decidiu assumir a responsabilidade e recomendar que os médicos induzam o parto a Beatriz, que está grávida de 24 semanas e cujo bebé não tem parte do encéfalo, pelo que morrerá minutos ou horas após o nascimento.

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Um homem lê um jornal de El Salvador cuja manchete é dedicada ao caso de Beatriz Jose Cabezas/AFP

O Governo de El Salvador, país onde o aborto é proibido, decidiu intervir para resolver o impasse de Beatriz. A mulher de 22 anos está grávida de 24 semanas mas tem uma doença grave e o bebé tem um problema no sistema nervoso que o fará nascer sem parte do encéfalo, sobrevivendo apenas minutos ou horas. Mesmo assim o Supremo Tribunal proibiu-lhe um aborto. Mas perante o tempo de gestação a ministra da Saúde decidiu intervir e autorizar os médicos a induzirem o parto, justificando que já não se trata de uma interrupção voluntária da gravidez.

O caso de Beatriz gerou reacções de indignação um pouco por todo o mundo, com várias organizações nacionais e internacionais a apelarem ao Governo de El Salvador no sentido de inverter a decisão tomada pelo Supremo Tribunal daquele país, que justificou que “os direitos da mãe não prevalecem” nunca sobre os da criança e que a Constituição salvadorenha entende “a pessoa humana desde o momento da concepção”.

Além disso, na mesma decisão os magistrados fizeram questão de lembrar que o aborto tem uma moldura penal que pode ir até aos 50 anos de prisão para as mulheres e até 12 anos para os médicos que o realizem. E disseram que a avaliação das condições de saúde de Beatriz permitiram concluir que não corre perigo de vida iminente, ainda que se deva utilizar todos os meios possíveis para salvar a sua vida.

Beatriz, que tem já um filho com um ano e meio, tem uma doença auto-imune chamada lúpus que lhe está a causar graves problemas renais e que põe a sua vida em risco. Tem também pré-eclampsia, uma doença que pode surgir durante a gravidez ou logo após o parto e que se caracteriza por hipertensão, retenção de líquidos e ainda um excesso de proteínas eliminadas pela urina. Além disso, o feto é anencéfalo – uma doença muito rara em que o bebé nasce sem parte ou totalmente sem encéfalo e sem calote craniana, morrendo logo nos primeiros minutos ou horas após o parto.

“Um feto anencéfalo é incompatível com a vida, visto que não tem sistema nervoso, e mesmo que sobreviva dentro da barriga da mãe por estar a ser alimentado pelo cordão umbilical, se não morrer no parto, morrerá nos primeiros minutos ou horas de vida”, explicou ao PÚBLICO Luís Graça, director do Serviço de Ginecologia e Obstetrícia do Hospital de Santa Maria (Centro Hospitalar Lisboa Norte) e também presidente da Sociedade Portuguesa de Obstetrícia e Medicina Materno-Fetal.

Pressões a favor de Beatriz
A pressão vinda de vários quadrantes resultou e a ministra da Saúde de El Salvador, que já se tinha mostrado favorável à abertura de uma excepção para este caso antes de ser conhecida a decisão do Supremo, decidiu procurar uma via legal para chegar ao mesmo resultado. “Vamos preservar a vida desta mulher seja de que forma for”, garantiu na quinta-feira María Isabel Rodríguez ao diário espanhol El País.

“Analisámos a decisão do Constitucional e acreditamos que nos dá a capacidade de actuar sem contrariar a Constituição. O tribunal reconhece que se devem fazer todos os possíveis para salvar a vida de Beatriz e determina que se ponham todos os cuidados e meios disponíveis para isso”, justificou a ministra. E acrescentou: “Isso significa que deixa totalmente nas mãos das autoridades de saúde e eu, como autoridade máxima de saúde, avaliada a actuação dos médicos, considero que caso seja necessário interromper a gravidez isso não seria um aborto mas sim um parto induzido. Dessa forma nem a mulher nem quem interviesse teria consequências legais. Não vamos deixar de a tratar e ao primeiro sintoma de agravamento da sua situação a equipa médica vai fazê-lo [o parto] imediatamente”.

“Eu quero viver, peço-lhes do coração que o façam”
A titular da pasta da Saúde disse que o tribunal invoca a Constituição do país para a proibição mas que na verdade Beatriz já caminha para as 25 semanas de gestação, pelo que “podia-se induzir um parto”. “Não estamos a trabalhar para a destruição do feto, mas as suas condições mostraram-se incompatíveis com a vida”, insistiu a ministra. Além disso, a intervenção dos médicos já mereceu o apoio do Tribunal Ibero-americano dos Direitos Humanos, com um apelo directo ao Presidente Mauricio Funes para que não continue a colocar em causa a vida de Beatriz quando o bebé nunca poderá sobreviver – numa decisão que foi considerada histórica, já que este organismo nunca se tinha pronunciado sobre o aborto.

Várias organizações de mulheres e de direitos civis já fizeram chegar apelos ao Presidente de El Salvador. As Nações Unidas fizeram igualmente um apelo a Mauricio Funes. Um grupo de Cidadãos pela Despenalização do Aborto Terapêutico foi mais longe e fez um vídeo onde apenas se vêem as mãos de Beatriz marcadas pelo lúpus e pousadas na barriga e onde se ouve a sua voz: “Sinto-me mal com tudo o que se está a passar. Não quero fazê-lo [o parto] sabendo que não vai viver. Creio que o melhor que podiam fazer por ele era salvar a minha vida. (...) Não faz sentido prosseguir com uma gravidez de um bebé que não vai viver. (...) Eu quero viver, peço-lhes do coração que o façam.”

Resta agora saber se os médicos se sentem suficientemente protegidos e apoiados para actuar, num país que além de proibir totalmente o aborto também não é claro a definir a linha que separa uma interrupção da gravidez de um parto induzido. Além disso, na decisão do tribunal lia-se que “os médicos devem assumir os riscos que congrega o exercício da sua profissão” mas sempre tendo em conta a Constituição que “garante a vida da mãe e do produto da concepção”.

El Salvador é um dos cinco países da América Latina, a par com a Nicarágua, a Honduras, a República Dominicana e o Chile, a proibir o aborto em qualquer situação, isto apesar de até à década de 1990 ter mantido uma excepção para casos com motivos clínicos.

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