Pagar ou não a dívida

Foi criada há dois anos e pouco a Iniciativa de Auditoria Cidadã à Dívida Pública (IAC) com o fim de promover o combate à corrupção, fomentando nas pessoas, nas instituições e nas empresas públicas, valores de transparência, integridade e responsabilidade na opinião pública.

Para mim é curioso que deste objectivo, vago mas nobre, de quem anseia uma sociedade com melhores valores, resulte um primeiro objectivo de conhecerem melhor a dívida pública portuguesa, nomeadamente quem as contraiu, quem são os credores, os montantes, os prazos, para que foram constituídas e como foram utilizadas. Sobre esta questão apresentaram um relatório técnico e agora uma petição pela “renegociação profunda” da dívida, a entregar na Assembleia da República em Outubro.

A questão da dívida é por certo um problema que nos aflige a todos, pior que ter dívida em excesso só mesmo não ter capacidade de crédito, que costuma ser o passo seguinte. Nos nossos governantes e nos políticos em geral é notório que este é um problema central. Para muitos, a justificação para gastarmos menos, reduzirmos salários e outras despesas com serviços públicos, encontrar forma de não gastarmos mais do que temos. Para outros algo de insustentável, que só se resolve quebrando os compromissos assumidos com os credores. É neste segundo grupo que vejo a posição do IAC e que me merece alguma reflexão.

Metemos muitas vezes no mesmo saco a dívida pública com a dívida privada quando falamos em dívida soberana. Têm efeitos muito distintos e são falaciosas muitas das análises que as baralham. A diferença principal, para o país e para os mercados financeiros, está na rendibilidade dos activos que as dívidas financiam. É fácil de entender que se a dívida só servisse para financiar investimentos que rendessem mais que os juros, quanto mais dívida tivéssemos melhor. Esse é o princípio que permite que as finanças gerem valor, por um efeito multiplicador que muitas vezes, de forma depreciativa, chamamos de alavancagem financeira. O problema, como é evidente, é com as dívidas que são contraídas para financiarem investimentos de baixa rendibilidade, já para não falar nas que só são usadas para suportar despesas que já foram feitas e que só na cabeça de uns quantos incautos se mistura com investimentos. Infelizmente que em relação à dívida publica a relação entre o custo dos juros e as receitas do investimento não é na generalidade directa, por uma razão muito simples, porque são constituídas apenas por razões orçamentais.

Muitos se arrepiam quando se fala que esta situação de excesso de dívida resultou de termos gasto acima das nossas possibilidades. Eu, que nunca fiquei a dever nada a ninguém? Pois é evidente que quando se fala em médias, só estaríamos correctos se todos tivéssemos um comportamento igual. Quando se diz que o salário médio em Portugal são €800 também não estamos a dizer que ganhamos todos o mesmo. Claro que a dívida aumentou porque gastamos acima das possibilidades mas voltamos ao mesmo. Muito pior que ter contraído os empréstimos foi a forma como os utilizamos.

Temos exemplos para a troca de tantos financiamentos que não deveriam ter ser sido contraídos. Há alguns anos os Bancos faziam inúmeras publicidades para venderem crédito à habitação. Eram os spreads ridículos, eram taxas de referência baixas, eram modelos de financiamento que durante cerca de 15 anos nem a totalidade dos juros se pagavam, era uma festa. Foi uma festa para os construtores, que não tinham que se preocupar com as casas serem precisas, bom era construir que os Bancos financiavam e por isso alguém as compraria. Foram inúmeras as pessoas que “aproveitavam” estas condições e que compravam as casas porque as primeiras prestações eram perfeitamente suportáveis. Nem os construtores conseguiam acompanhar a procura, os preços começaram a subir, coisa que não preocupava ninguém porque assim haveriam de continuar. Os prédios, ainda em planta, eram comprados por investidores com o pagamento de uma pequena entrada que depois trespassavam a outros que vinham atrás com a vantagem, na altura, de tais rendimentos não estarem sujeitos a imposto. Tudo isto se passou, cá e em muitos lados, como se fosse o mais normal. Uns anos depois as prestações desses financiamentos subiam, nem eram tanto os juros que tinham subido mas as prestações eram por natureza crescentes e só a ilusão dos tomadores desses empréstimos teria feito crer que os ordenados ou os rendimentos teriam que acompanhar esse crescimento. Os próprios Bancos tiveram que ter pensado que o valor das casas seria sempre crescente, só assim se compreende que tivessem promovido o crédito à habitação da forma que o fizeram. Hoje podemo-nos todos fazer de vítimas, ai não sabíamos, só compramos a casa porque precisávamos de um sítio para viver, problema foi dos especuladores que fizeram subir os preços, os Bancos é que emprestaram. Ai, não gastamos acima das nossas possibilidades? Foi tudo culpa dos outros?

Que o problema existe ninguém tem dúvidas e é hoje fácil dizer que a responsabilidade foi deste ou daquele, é uma tendência natural, não nos dá jeito nenhum que a culpa seja nossa. Também é evidente que uma parte substancial da dívida não serviu para investimento, o que se chama formação bruta de capital fixo. Pois não, foi dinheiro mal gasto, que em média, todos gastamos, claro que uns se aproveitaram mais que outros.

Ouvir os discursos políticos sobre este tema traquina os nervos de muita gente. Numa primeira impressão ficamos com a ideia de que os partidos políticos mais à direita privilegiam a austeridade como forma de equilíbrio das contas públicos e consequente rigor orçamental e os outros, mais à esquerda escolheriam a despesa e o investimento como forma de criar condições de suportar esta situação. Mas andamos todos a dormir? Não foram sempre os mesmos partidos que nos governaram desde 1974? Não foram sempre os mesmos que de manhã gastam e de tarde tentam equilibrar? Não está em causa a bondade das intensões dos diferentes partidos, até porque nesse aspecto e por definição querem todos o mesmo.

O que está em causa de facto é que gastamos sim, a mais e mal, à custa de credores que agora não nos saem da perna! A culpa foi nossa que gastamos ou dos credores que nos emprestaram? É uma falsa questão, é que não haveria um sem o outro!

Do relatório do IAC, que mencionei, gosto bastante da caracterização da nossa dívida, como lá chegamos e qual o percurso até à situação actual. Discordo de algumas partes, em especial quando se mistura alguma ideologia para descrever o que deveria ser apenas factual, mas não retira a qualidade do trabalho final em que é bem apresentado a dimensão do problema que temos em mãos. Onde discordo em absoluto é na conclusão que face à situação actual a melhor solução é não pagar ou pagar apenas como nos dê mais jeito. Sou de opinião que o impacto negativo na qualidade de vida que vamos tendo seria tremendo com qualquer “renegociação profunda” da nossa dívida.

Fala-se muito em sustentabilidade da dívida, muito em resumo, condições financeiras de a manter face ao produto económico que temos. Não vale a pena falar em problemas que não têm solução, esses estão por natureza resolvidos mas não se caia na tentação da solução que nos dê mais jeito se essa própria for insustentável.

Alguns políticos, em especial um histórico do grupo de responsáveis na forma como a nossa sociedade tem evoluído nos últimos 40 anos, dizem que a dívida tem que ser renegociado ou no limite deixar de ser paga. Dão até alguns exemplos, muitas vezes a Argentina, como casos que considerarão de sucesso ao ponto de acharem que nada lhes aconteceu pelas opções que tomaram. Eu nem discuto esta opinião. Esta gente tão bem informada pode achar mesmo que nada lhes aconteceu? Pois claro que não, podem é dizê-lo.

É evidente que nenhum financiamento tem que ser cumprido custe o que custar. Quando alguém empresta dinheiro a outro, cobra um juro que inclui para além do preço base, devido pela indisponibilidade do mesmo durante um certo tempo, uma parte que corresponde ao risco de crédito. Quando, por exemplo, uma empresa pede um financiamento a um Banco com base em determinados pressupostos e na convicção que o investimento produzirá meios suficientes para vir a cumprir com o serviço da dívida não quer, naturalmente dizer, que tudo tenha que necessariamente correr bem. A evolução desse investimento poderá vir a ter, por variadas razões, relevantes desvios em relação ao que era inicialmente projectado e, no limite, pode não ter condições de devolver o capital emprestado. É natural que num caso destes o Banco fique a perder e tenho até dúvidas da legitimidade de muitas garantias extras que os Bancos pedem nestes casos. Se o negócio corre mal perdem todos. Outra coisa completamente diferente é a empresa poder considerar que o melhor para o seu futuro e o dos seus colaboradores é deixar de pagar o empréstimo. É que o mais normal, no caso de incumprimento deste financiamento, é que a empresa deixe de existir.

É utópico pensar que que o país pode, face a um orçamento apertado que não chega para tudo, decidir pensar que corta no serviço da dívida dos empréstimos porque assim sobra para outras rúbricas. A razão é evidente, é que todo o orçamento se modificaria se tal pretensão fosse aventada pelos nossos governantes. Quando se fala em modelos económicos usa-se muitas vezes a expressão ceteris paribus, isto é, o que aconteceria se alterássemos qualquer coisa se tudo o resto se mantivesse constante. Mas isto não é mais que uma construção teórica de pensamento e muitas vezes de construção da ciência. Ceteris paribus se deixarmos de cumprir com o serviço da dívida é algo impossível de acontecer.

Claro que nos podemos e devemos questionar como são repartidos os sacrifícios na reposição de uma situação de equilíbrio orçamental. A parte que transparece mais injusta é que são os mais “fracos”, com pouco ou nenhum poder negocial, que suportam a grande parcela enquanto muitos, que até ganharam muito com o processo que nos trouxe até aqui, pouco ou nada pagam. Achar que devem ser os credores e não os que gastaram a mais que devem pagar é que não é tão linear, a não ser que tenhamos uma alternativa ao seu apoio que não nos traga problemas ainda maiores.

Uma coisa me parece evidente, só pode achar que nada nos acontece se deixarmos de pagar quem tiver dinheiro em local seguro que chegue e não se preocupe nada com as necessidades dos outros. Isto excede o problema político, são más pessoas mesmo.
 
 

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