A Raposa

Uma narrativa erudita de outra época em que a palavra crise também fazia parte do quotidiano: Portugal, século XIX

 

Rodrigo da Fonseca Magalhães (1787-1858) teria dito, no leito da morte: “Nasci entre brutos, vivi entre brutos, morro entre brutos”. A frase será apócrifa, mas ajusta-se bem à personalidade desse político a quem chamaram “A Raposa”. Com uma inteligência “vulpina”, procurou a conciliação entre diferentes facções, numa altura em que a política portuguesa se caracterizou por uma oposição feroz entre a esquerda radical setembrista e a direita cabralista. Do período em que viveu, alguns temas têm uma inevitável ressonância contemporânea: a excessiva dependência estrangeira, o desenvolvimento das vias de transporte à custa de um endividamento excessivo, os empregos clientelares, o domínio masculino da política partidária, etc.

Maria de Fátima Bonifácio, reconhecida historiadora da política oitocentista, revela no seu novo livro um Rodrigo da Fonseca sempre presente na história política portuguesa, entre 1820 e 1860. Tudo isto num contexto europeu mais alargado, onde “revolução” e “contra-revolução” eram também palavras de ordem. Mais na sombra, ou como personagem principal, enquanto ministro do Reino, “A Raposa” não esteve só de um lado ou só do outro, como a maioria dos políticos coetâneos. Nos interstícios da conciliação, acima das quezílias partidárias, foi ele quem proporcionou, em diferentes momentos, o encontro possível entre as múltiplas forças em acção.

A primeira parte, Rodrigo na Revolução, trata das sucessivas mudanças políticas das décadas de 1830 e 1840. O país procurava, então, definir-se na sequência das lutas liberais entre os partidários de D. Miguel e os de D. Pedro, na aceitação da Carta Constitucional e no difícil entendimento político entre facções opostas. Estas, arreigadas nas suas posições, minavam as possibilidades de uma estabilidade governativa e impediam qualquer projecto de conciliação. Como explica a autora, a memória ainda recente da Revolução Francesa consolidara a revolução enquanto forma de afirmação ideológica. A violência política, que antes era condenada e punida, passou a ser, tanto no contexto português como no europeu, uma forma de o povo — um “povo” socialmente heterogéneo — demonstrar o seu descontentamento e impor a sua vontade. Foi contra este “revolucionarismo endémico” que Rodrigo da Fonseca se manifestou durante a sua longa vida política. Este é, aliás, o argumento principal deste livro.

Em análise, estão as muitas mudanças políticas que se fizeram sentir, algumas sem nome próprio, outras com uma forte identidade na narrativa, até escolar, de uma história nacional contada a partir de eventos políticos: o cabralismo, a revolta de Torres Novas, a Patuleia — a “pata-ao-léu” que assumia as origens populares da revolta — ou a famosa Maria da Fonte, considerada como a primeira revolta de raiz realmente popular, onde as mulheres tiveram um papel determinante.

No contexto dessa permanente instabilidade política, justificada por diferentes leituras da norma constitucional — “quase não houve revolução, motim, tumulto ou pronunciamento que não tivesse por objecto reformar ou mudar a constituição” —, Rodrigo da Fonseca Magalhães fez a diferença. Conciliador, tolerante, hábil, pacífico, liberal, sensato, moderado, dialogante, maduro, respeitável, independente, pluralista são alguns dos adjectivos utilizados para definir a sua personalidade enquanto político. Neste trabalho de caracterização, a autora não oculta a sua admiração pelo biografado.

Foi durante a Regeneração que Rodrigo melhor pôs em prática as capacidades de concertação já demonstradas anteriormente. Porém, o seu modo de actuar foi denunciado pelos seus críticos como perigoso. A vontade reconciliadora de Rodrigo era tida como uma falta de carácter ou como o resultado de uma inconsistência ideológica. E as suas tentativas de pôr cobro a um sistema endémico de clientelismo — em que a cada novo governo se sucedia uma horda de demissões e novas contratações — também não eram bem vistas por todos, sobretudo por aqueles que dele esperavam uma compensação. Era Rodrigo um homem fora do seu tempo, distinguindo-se dos “brutos” que tinha de moderar? Ou terá o seu tempo sido realmente afectado pela sua intervenção, tal como o livro parece sugerir, colocando a ênfase na sua acção pacificadora e consensual?

Se o livro apresenta Rodrigo como sendo o garante de uma estabilidade inusitada de cinco anos, Fontes Pereira de Melo surge como a figura de acção da Regeneração. O país pequeno tornava-se enorme pela ausência de meios de comunicação. A criação do ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria, a construção de estradas e a dos primeiros caminhos-de-ferro (feita à custa de empréstimos substanciais resultantes de mudanças drásticas nas políticas financeiras) constituíram-se nos principais marcos de um período em que a palavra progresso entusiasmava uns e assustava outros. Para muitos, era a solução de todos os males, os ventos da Europa do Norte finalmente a soprarem a Sul. José Estevão, por exemplo, o mais famoso deputado aveirense, comparava a construção do caminho-de-ferro ao dobrar do Cabo da Boa Esperança. Mas, para outros, era o culto do materialismo e a desagregação dos valores morais que suscitavam a nostalgia em relação ao passado e aos modelos de proteccionismo económico.

Apesar de a biografia sublinhar o carácter essencialmente político de homem de Estado, também refere o papel precursor de Rodrigo em reformas da educação. Estas, mais no papel do que na prática, anunciaram mudanças que só a República conseguiu levar avante: a promoção da instrução primária feminina e a universalização do ensino primário gratuito; a criação de escolas para formar professores; a fundação de liceus; e a tentativa, contestada e falhada, de quebrar o monopólio universitário de Coimbra com o Instituto de Ciências Físicas e Matemáticas de Lisboa.

Bonifácio está mais interessada em dialogar com as fontes do que com outros historiadores. A sua posição historiográfica é clara e já foi afirmada num livro anterior, Apologia da história política. Consciente de todas as “revoluções” que a disciplina histórica viveu ao longo do século XX — da procura das grandes estruturas da escola dos Annales às explicações económicas e sociais do marxismo, ou às abordagens a partir das margens, das não-elites, dos não-homens, dos não-brancos —, a historiadora acredita numa história narrada a partir de cima, centrada nas suas elites políticas, com nome próprio e com acesso à palavra. As suas decisões ou incapacidades para decidir, os seus pensamentos escritos e discursos públicos, os escândalos em que se envolveram, as negociações internacionais, as alianças visíveis e invisíveis. Nesta narrativa, os compromissos possíveis de Rodrigo confrontam-se com a violência política de Costa Cabral, situado nos seus antípodas e excessivo nas punições aos seus opositores.

Enfim, este livro requer do leitor uma cultura histórica apreciável que lhe permita beneficiar da sua enorme erudição, exposta numa escrita límpida, mas densa. Aconselha-se a sua leitura a quem se interesse pelo fazer da política e queira aprofundar os seus conhecimentos sobre uma época onde a palavra crise fazia parte do léxico do quotidiano. Quem o ler não poderá voltar a passar pelas ruas da Lisboa oitocentista de forma inconsciente. Do Saldanha para a Fontes Pereira de Melo e até à Rodrigo da Fonseca, a topografia da cidade fixou na memória colectiva os nomes daqueles que esta obra consegue explicar enquanto agentes de uma história política.

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