Coração cheio

Não percamos um minuto que seja. Aproveitemos devidamente o que este cantor abençoado guardou tanto tempo para nos mostrar

Não há a angústia de The world (is going up in flames) ou a terrível dor de Heartaches and pain. No Time for dreaming, cantava Charles Bradley no seu álbum de estreia, história de vida vertida em soul de finíssimo quilate. Dois anos depois, no lugar do desencanto e da denúncia (“Why is is so hard to make in America?”) está um coração cheio. Victim of love, ou Charles Bradley no Olimpo de sedução de Al Green ou Marvin Gaye. E com aquela voz, funda e expressiva, totalmente transparente (só emoção), que dá a ilusão de ser ela mesma toda a música.


O trabalho da equipa da Daptone Records, como habitualmente, é irrepreensível: a leveza Motowniana de You put the flame on it, a soul acetinada, reconfortante, de Strictly reserved for you ou essa Confusion que homenageia directamente o funk “psicadelizado” do Curtis Mayfield da estreia a solo (o baixo carregado de fuzz, os ecos na voz, o wah-wah, os teclados de orquestra soul para tempos de convulsão). Mas, uma vez mais, o coração desta música é Bradley e a forma como se entrega a cada canção, a cada palavra cantada, como se fosse a mais importante, a derradeira. E isso, apesar de Victim of Love não ter o mesmo peso emocional, imenso, de No Time For Dreaming, continua a fazer de Bradley um cantor especial, um intérprete soul irrepreensível. E um homem de uma classe imensa, quer na forma como se insinua à maneira de Al Green (Let love stand a chance), como se entrega aos doces pecados de Love bug blues (canção a pedir um filme blaxploitation só para si), ou como acompanhamos a sua voz, à frente de todos os instrumentos, na canção despida a guitarra acústica e coro que dá título do álbum.

Charles Bradley estreou-se em álbum aos 62 anos. Demorámos a descobri-lo. Ao segundo disco, confirma-se. Não percamos um minuto que seja. Aproveitemos devidamente o que este cantor abençoado guardou tanto tempo para nos mostrar.

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