- Queres vir jogar, amanhã, ao meio dia?
- Não posso.
- De certeza?
- Tenho uns textos para entregar e estou muito atrasado. Ainda por cima já tenho jogo hoje à noite.
- É só uma horita, para descomprimir.
- Nunca é só uma hora. Chegar, equipar, uma hora de jogo, tomar banho...
- É contra o Carlos Manuel...
- Carlos Manuel, o ex-jogador?
- Sim. Ele e uns amigos polícias. Precisamos de um guarda-redes....
- Ainda por cima à baliza?
- Vá lá, não é todos os dias que podes defender os remates do Carlos Manuel.
Carlos Manuel, Alemanha vs Portugal, vou à procura na internet, apesar do trabalho, não é por dois ou três minutos. Já vi o golo mil vezes, todos vimos, mas agora é diferente, quem vai à baliza sou eu. O herói de Estugarda, o homem que derrotou a Alemanha com um tiro ao ângulo e colocou Portugal no México 86, numa altura em que não éramos presença assídua nas grandes competições. A ressaca chegou depois, chega sempre, em plena América Latina. O famoso caso Saltilho, prémios de jogo, greves, acusações, perna partida de Bento, derrotas contra Polónia e Marrocos, essas grandes potências. Portugal é uma festa em qualquer parte do mundo, os anos não passam por este país.
México 86! O meu primeiro Mundial. A minha primeira caderneta. Carlos Manuel no campo — um golo contra a Inglaterra —, Futre no banco, Maradona, assim na terra como no céu, quando voltam a fazer mundiais assim?
- Vais jogar logo à noite?
- Não sei, estou cheio de trabalho. E vou jogar agora ao meio dia, o Filipe convidou-me. É contra uma equipa do Carlos Manuel.
- Carlos Manuel, o ex-jogador?
- Sim. Precisavam de um guarda-redes.
- Sabias que o Carlos Manuel era o meu ídolo?
- Não era o Futre?
- O Futre e o Carlos Manuel. Controlava a bola como ninguém.
- Pois... dois jogos no mesmo dia é que talvez seja demais, ainda por cima com tanto que fazer. Tenho que aprender a dizer não.
- Dizes da próxima vez. Não é todos dias que se tem a possibilidade de jogar contra o Carlos Manuel.
Já entre os postes. Carlos Manuel e polícias de um lado, jornalistas do outro. Começamos bem, ainda assim, não me entusiasmo. Nunca confiar num cozinheiro magro nem em jogadores mais velhos e com barriga, há ensinamentos que ficam para vida. Se fizer uma falta dentro da área marcam penálti ou mandam-me prender?, meto-me com ele. Há quem goste de conversar durante os jogos, pode ser que pegue. Não me ouve. Joga de gorro na cabeça, casaco e calças de fato de treino. Costumo, por mau feitio, não respeitar jogadores que jogam de calças e à mama, o futebol joga-se de calções e no campo todo, mas é o Carlos Manuel; 55 anos, 42 jogos pela selecção, quatro campeonatos, cinco Taças de Portugal, duas Supertaças, parece-me justo. Chega uma bola, finalmente, um cruzamento longo. Cola no peito, à entrada da área, roda, ganha posição, enquadra-se com a baliza e remata forte, colocado, em arco, com a bola a bater na parte exterior do poste. Pisca-me o olho. Estava lá – digo-lhe. O guarda-redes da Alemanha também. Shumacher. Nem de F1 a agarrava.
- Está tudo bem, filho?
- Cansado. Tenho que acabar uns textos e estou muito atrasado. Ainda por cima fiz dois jogos de futebol.
- Dois?
- Sim, um deles não podia recusar. Era contra o Carlos Manuel.
- Quem é o Carlos Manuel? Um amigo teu?
- Um antigo jogador...
- E ganhaste?
- Perdi. O pai, está bem?
- Está, foi ao café ver o Vitória.
- Dá-lhe um beijo, quando ele chegar. E diz-lhe que hoje estive a jogar com o Carlos Manuel. Não te esqueças.
- Ok, vou tentar não me esquecer. É assim tão importante?
- É.