Lembranças em Mi menor

Se um dia encontrar aqui um grande cavalo de ouro, cavaleiro incluído, pago primeiro a dívida de Portugal ao estrangeiro e fico com o resto

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Killfile / Flickr

Sempre vi mal. Uma coisa estranha – os objectos a ficarem muito distantes mas enormes ao mesmo tempo, algumas vezes ao acordar de um pesadelo sempre igual em que uma bola feita de não sei o quê se condensava e apertava, apertava, apertava. Uma amiga da minha mãe a dizer que eu era fraca de espírito. A velhota a agarrar-me as mãos com olhar fixo para afastar os maus agouros. Eu na pressa que me largasse, já estou boa, já estou boa, um medo a crescer cá dentro devagarinho e a inundar-me até às orelhas que principiavam a arder.

Com a minha força já ficou boa, assegurava, e logo de seguida uma teoria sem fim acerca do assunto onde era entendida, de espíritos e forças e maus-olhados. Os assombros na minha cabeça – fraca de espírito. Os adultos eram criaturas estranhas, não me metia nas conversas deles, não lhes entendia as ironias. Para mim só existiam verdades, nunca duvidava do que me diziam.

Por isso cresci a pensar que era fraca, a minha tez sempre pálida, uma fragilidade física que noto nos retratos, como se em cada um espreitasse a velhota a assegurar que sim, fraquinha fraquinha, coitada. O vizinho para mim: ”Posso te comprar?”. Corri a perguntar à minha mãe porque ele tinha garrafas de gasosa e laranjada de que eu gostava muito, daquelas com rolha que encaixava auxiliada por uns arames - desprendíamos os arames e a tampa saltava, que mistério. Tantos piquinhos na boca, que bom.

A minha mãe disse que sim e fiquei pacientemente à espera que me viesse buscar, afinal era ali ao lado, podia matar as saudades, eu que não conseguia ficar longe da minha mãe nem sequer uma hora. Ela atrasada e já eu lavada em lágrimas a espreitar pelo postigo da porta da rua a imaginar que fugira e que nunca mais a veria. As noites em que acordava, ao lado da janela, a olhar o céu estrelado.

As grandes portadas de madeira que se dobravam em duas quando as abríamos. O quintal que para mim era um lugar onde todos os piratas escondiam grandes tesouros, só não tinha paciência para os desenterrar mas sabia que estariam lá sem a menor das dúvidas. Se um dia encontrar aqui um grande cavalo de ouro, cavaleiro incluído, pago primeiro a dívida de Portugal ao estrangeiro e fico com o resto, pensava eu. Inquietava-me a sensação de dívida, queria resolver a situação de uma vez por todas, que chatice, que preocupação.

Que bom quando chovia… trepava para o telhado do rés-do-chão pelas traseiras e sentava-me em cima da chaminé. Era poesia a chuva, lavava-me por dentro, fazia-me sonhar, faziam-me sentir bem os trovões, os clarões no céu, a ventania. A ventania, que palavra tão linda, ventania… o resto deixava de existir e passava a ver e sentir tudo com uma clareza inexplicável, como se o pó do mundo assentasse por debaixo da tempestade. A palmeira em frente ameaçava cair e dobrava-se em vénias sucessivas. Sempre esperei que dela nascessem bananas, ano após ano e por vezes até jurava que sim, não são folhas lá em cima, são frutos já. Trepar e apanhá-las mas como? O tronco era o pé de feijão da história do João, enorme enorme...

Cresci e já entendo as ironias dos adultos, passei a gostar mais do sol, já não tenho quem me agarre as mãos para afastar a fraqueza, nem olhos assustadores pousados sobre mim. O vizinho já não me quer comprar, a minha mãe já não volta da rua com os sacos das compras nem eu a espero à porta na ansiedade dos aflitos. Já não há chaminé para receber a chuva, nem casa de portadas de madeira dobradas em dois. Já não há cavalo de ouro, nem cavaleiro, nem palmeira açoitada pelo vento. Só ficou a magia. Fiquei eu aqui só com estas minhas lembranças tocadas em Mi menor.

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