O Michael Jackson do Cirque du Soleil é para fãs convencidos

Immortal é um Jackson para o qual gostamos de olhar, com o qual gostamos de nos emocionar. Mas é só isso, um Jackson de decoração.

i-video
O circo chegou à cidade e trouxe Michael Jackson com ele Joana Bourgard

The Immortal – Michael Jackson Pelo Cirque du Soleil Pavilhão Atlântico, até 14 de Abril 11 Abril, 21h30, sala a dois terços Duas estrelas e meia

Luzes, fogo, uns passos reconhecíveis e this is it! A música a compensar a espera, as expectativas elevadas, as letras há muito decoradas, as coreografias há ainda mais tempo sabidas e a memória, sempre a memória, à frente de tudo. Mesmo quando, à frente, o que se vê tenha pouco de memória, muito de nostalgia mas sobretudo – e o sobretudo aqui faz toda a diferença – uma vontade de tornar crístico o que sempre se quis profano. Abrem-se os portões de Neverland e, à nossa frente, a imagem de um Michael Jackson como o recordamos, miúdo-prodígio nos Jackson 5, voz de anjo em corpo de swing, como se a evocação sugerisse uma viagem delicada e memorialista pelo percurso de um dos mais importantes nomes da música enquanto espectáculo total do século XX.

Immortal, o espectáculo que a máquina de imaginação, mas ainda mais de produção, que é o Cirque du Soleil criou em homenagem a Michael Jackson chegou a Lisboa para ficar quatro dias, é para fãs convencidos. Pouca margem há, se admissibilidade houver, para primeiros visitantes. É preciso memória, pede o espectáculo,tal como, aliás, o álbum Immortal do qual parte, também ele um conjunto de remixes. O espectáculo elenca canções, espartilha géneros e cavalga sobre uma onda de deleite fetichista que faz esquecer o cuidado com que o músico se dedicava a cada fase do processo de criação de um álbum ou de um espectáculo. Não é difícil perceber. O filme This is it!, documentário que seguiu o processo de ensaios dos concertos que marcariam o regresso de Jackson aos palcos, em 2009, mostra isso mesmo. Com a vantagem de perceber que atrás dos efeitos, dos movimentos, das acrobacias, das luzes e do impacto sonoro existia uma vontade intrínseca em contar histórias.

Immortal tenta aproximar-se disso, servindo-se dos mecanismos tradicionais de um espectáculo do Cirque du Soleil. A saber: um mestre de cerimónias que surge recorrentemente procurando criar um arco narrativo entre as sequências; uma articulação entre efeitos visuais que transforma luz, som e vídeo num só elemento; uma coreografia que ensaia uma estrutura a grande escala que nunca se compromete com detalhes, antes aposta no efeito; um ritmo que não admite paragens; uma profusão de manipulações de palavras-chave das canções de Jackson – a última delas Unity (unidade mas que poderia também ser "uni-vos") a fazer apelo a uma dimensão humanista que também caracterizava Jackson.

Immortal é sobre isso: um Jackson de decoração, para o qual gostamos de olhar, com o qual gostamos de nos emocionar. Mas é só isso. E é pouco, por mais reconfortado que possa ficar o coração daquele que recebe exactamente o que pediu: luz, cor, fantasia, música e um bocadinho de tristeza. Dois sapatos de verniz preto com meias brancas e uma luva de brilhantes gigantes depois e o que temos é um espectáculo sem forma, sem rasgo, pálido na cor e sem picos na energia, com efeitos de luz esmagadores e, às vezes, uma coreografia que, por muito bem executada, está mais próxima das flash mobs que do desenho inteligente que víamos nos palcos dos seus concertos. É uma homenagem, não é uma invenção, como acontece, por exemplo com We will rock you, dedicado aos Queen.

A estrutura do palco, com uma rampa ao centro, simula o palco do que seria o concerto de Michael Jackson no O2 Arena, em Londres, e nos ecrãs que encimam o palco passam excertos de vídeos do músico, de vez em quando também usados para projectar o que se vai passando no palco. Mas no palco, onde sempre tudo aconteceu para Jackson, o que agora acontece é pouco. Compreende-se porquê.

Os vídeos que fizeram a história de Jackson foram realizados por John Landis, Martin Scorsese, David Fincher, John Singleton, Spike Lee ou Herb Ritts, entre outros, e, ainda hoje, nos contam como foi possível construir, através da televisão e usando a experiência do cinema musical, um universo referencial vasto, muitíssimo complexo. Devia-se isto ao facto de os videoclips terem sabido aproveitar a televisão (era a época dourada da MTV) como mecanismo de evasão como antes o cinema fora, deixando para os palcos a essência que caracterizava o músico: um carisma e um poder de atractibilidade raros. Immortal, sem Jackson, é, literalmente, um espectáculo de música gravada com acrobacias.

Muitos dos vídeos, principalmente a partir de 1989, com Leave me alone, constroem uma ficcionalização de factos da sua vida (nem sempre abonatórios para a sua imagem) e uma cuidada reescrita desses mesmos factos, num jogo de construção de uma personalidade, e de culto a essa personalidade, como raramente nos foi dada a ver. Os concertos, por outro lado, eram mais simples, por isso memoráveis (e há vários disponíveis em DVD e na Internet).

Immortal reconhece a dificuldade em ultrapassar a sofisticação dos vídeos de Jackson, usando-os em abundância, tanto projectados como ensaiando recriações em palco. Dois exemplos: Thriller claro, com a parada de zombies (um tanto sofisticada demais ao ponto de considerarmos estar a ver uma cópia reduzida da sequência Vogue, no concerto de Madonna em 2004 no mesmo Pavilhão Atlântico), mas também o chimpanzé Bubbles que, no vídeo Leave me alone, surgia para interromper o processo de humilhação pública a que Jackson estava a ser sujeito “na vida real”, e aqui surge como uma das personagens do universo do músico num momento de celebração.

O espectáculo é assim prisioneiro da sua própria armadilha para poder existir. Ao perceber que vivemos numa época em que a espectacularidade se transferiu dos palcos para o cinema a 3D, ou para jogos de computador em realidade virtual, as limitações do palco surgem como uma pecha na construção de um universo onírico como pretenderia Jackson nos seus vídeos. Um onirismo que fizesse pensar (várias foram as letras que apelavam a uma consciência cívica e vários são os momentos em palco nas quais são recordadas – termina com Black is White, o discurso político que era uma metáfora para toda a vida do cantor). E o Cirque du Soleil, que sabe combinar essas duas dimensões, mostra aqui dificuldade em dialogar com a sofisticação e o lado sublime de Michael Jackson. Retirada a parafernália visual, Jackson contava uma história – e os seus vídeos são micro-ficções – e ainda fazia música que importava. Retirada a parafernália e Immortal não existe: efeitos, efeitos, efeitos. Exacerbação de emoções, gongorismo visual e retórica coreográfica. E Michael não está lá.
 

Sugerir correcção
Comentar