Sou democrata, mas...

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Pedro Passos Coelho não gostou da decisão do Tribunal Constitucional que chumbou quatro normas do Orçamento do Estado de 2013. O seu descontentamento era previsível. O que não se esperava era que o primeiro-ministro usasse quase metade do tempo da comunicação que fez domingo à tarde ao país na sequência da decisão do Tribunal Constitucional para criticar o próprio Tribunal Constitucional.

Começou bem e disse o elementar: "É evidente que o Governo respeita e cumprirá as decisões do Tribunal Constitucional. Não podia ser de outra maneira num Estado de direito democrático que preza as suas instituições."

Mas nos dez longos minutos seguintes, o primeiro-ministro demonstrou justamente o contrário.

Tratou o Tribunal Constitucional como se fosse um parceiro com o qual se discute política ao mesmo nível, de igual para igual, escolhendo - num discurso preparado e escrito - um tom de desqualificação em relação ao mais elevado órgão do poder judicial do país que vai para além do incómodo ou do simbólico.

O primeiro-ministro poderia ter pedido desculpa por ter violado a Constituição (muito improvável, embora fosse do agrado de alguns constitucionalistas) ou poderia ter dito que agira em boa-fé e acreditava que nenhuma norma do seu Orçamento era inconstitucional (mas não seria credível). Ou poderia ter optado por falar sobre isso, mas pouco, e usar os 18 minutos de antena para dizer o que vai o Governo fazer na sequência do chumbo do Orçamento.

A estratégia do primeiro-ministro foi radicalmente oposta. Sem brilho, num tom punitivo e revanchista, Passos Coelho desfiou a sua longa lista de críticas. Sobre o Tribunal Constitucional não teve uma ou duas coisas a dizer. Teve 15. É este o rol: o Tribunal Constitucional não tem "grande realismo" nem "uma consciência aguda dos imperativos impostos" pelas actuais circunstâncias; as futuras alternativas "poderão" pôr em causa "valores importantes da Constituição"; a decisão "tem consequências muito sérias para o país"; "torna a posição portuguesa mais frágil" nas negociações com a troika; "introduz incerteza e imprevisibilidade"; "corre em sentido contrário à orientação estratégica de regresso aos mercados"; é "um risco para todo este processo"; "coloca obstáculos muito sérios à execução orçamental de 2013"; "torna problemática a consolidação orçamental para os próximos anos"; deixa a sétima revisão da troika inconcluída; bloqueia a transferência do montante previsto; torna "a vida dos portugueses mais difícil" e "o sucesso da recuperação nacional mais problemático" e, pelo meio, o primeiro-ministro ainda conseguiu deixar a ameaça no ar de que a decisão do Tribunal Constitucional pode vir a contribuir para a saída de Portugal do euro.

Uma coisa é o primeiro-ministro dizer que o Governo está decepcionado com a decisão e que preferia que o tribunal tivesse aprovado o Orçamento, de modo a que tudo seguisse como previsto.

Outra é transformar num inimigo político o último árbitro do país, fiscal de todos os fiscais. Não se trata de sacralizar o Tribunal Constitucional. Mas a "força dirigente" da Constituição, como dizem com carinho os constitucionalistas, e a decisão dos seus juízes não podem ser questionados como se se tratasse de uma petição popular com muitos assinantes na Internet.

O Tribunal Constitucional não é um entre iguais. Estas são as regras do jogo e não podem ser mudadas com um discurso na televisão. Mais do que se ter revelado como político, Passos revelou o seu entendimento da democracia portuguesa.
 

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