Ao contrário do que é habitual, esta é uma exposição que decorre simultaneamente em dois lugares, separados por 300 quilómetros de distância: A substância do tempo, uma grande antológica de desenhos de Jorge Martins, artista com trabalho consistente e de qualidade desde finais dos anos 50. Sem a visita aos dois espaços, não é possível ficar com uma ideia abrangente daquela que é a produção de Jorge Martins. E, mesmo assim, a exposição incide unicamente sobre o desenho. Faltam todas, ou praticamente todas as pinturas; há algumas obras sobre tela em Serralves, mas elas incluem-se, pelo conceito e pelo estilo, no âmbito muito preciso dos desenhos que aí estão expostos. E a pintura é, no caso deste artista, um universo que se desenvolve independentemente do desenho. Trata-se de outro assunto, já exposto por diversas vezes, e que, para quem acompanha a produção do pintor, enriquece ainda mais o entendimento global da sua obra.Falemos, pois, de desenho. Houve uma indicação prévia vinda de Serralves, ainda na anterior direcção de João Fernandes, de expor apenas obras abstractas. Por isso, a exposição possui aí uma unidade que não existe na Fundação Carmona e Costa (FCC) de Lisboa, onde se optou por uma montagem mais representativa do trabalho do artista. A selecção esteve a cargo do próprio artista e de Manuel Costa Cabral, que assume também a curadoria em Lisboa, sendo que a mesma, no Porto, ficou a cargo de Marta Moreira de Almeida.É comum dizer que a grande interrogação que está subjacente à obra de Jorge Martins consiste na questão da luz. É certo que esta questão atravessa muitos dos seus trabalhos, nomeadamente aqueles que correspondem à época em que começou a trabalhar, e que coincide também, grosso modo, com a mudança para Paris, onde viveu 30 anos a partir de 1961. Contudo, esta afirmação é redutora. De outro modo, como explicar a extraordinária diversidade de temas, estilos e mesmo tempos de trabalho do artista? Em Serralves, muito do que vemos parece de facto girar em torno dos efeitos de luz, quer seja nos listados cinzentos que alternam entre o peso e o aflorar ao de leve da grafite ou do carvão sobre o suporte, ou dos sólidos que projectam as suas sombras sobre o branco do papel. Com frequência, estes sólidos transformam-se em dobras representadas, ou em geometrias malevitchianas que a montagem inusitada, que não se esquiva a sobreposições de duas e mesmo de três fileiras de desenhos, ajuda a agrupar mentalmente.Em Lisboa, pelo contrário, a selecção associou as peças por temas. É que a FCC, que funciona num apartamento de um prédio de escritórios, possibilita esta divisão. Variações em torno de um cubo, desenhos eróticos, desenvolvimentos seriais (que, por vezes, tomam a forma de pequenos alfabetos plásticos), gestos, quadros, e por fim as obras mais antigas, ainda da época em que transitava do curso de arquitectura para o de artes plásticas, datadas da década de 50, instituem uma ordem num processo que foge sistematicamente à racionalidade temática ou formal.De facto, o pintor evita em permanência a colagem a um único tema. É frequente, quando visitamos o seu atelier, encontrá-lo repleto de obras surpreendentes pela sua diversidade, facto que o artista se esquiva a comentar. Por isso, descobri-las aqui expostas com as suas “famílias” artísticas, como refere o comissário, releva de um trabalho que mergulha na própria consistência do tempo. Sara Antónia Matos, que escreve um texto notável no livro editado por ocasião da exposição, menciona justamente este enevoado de referências e de tempos que é, essa sim, a grande constante da obra do pintor. Mais do que a luz, mais do que a figura (ou, muitas vezes, a mera indicação da figura) ou a dobra, mais do o quadrado, o novelo, o gesto, a repetição, tudo elementos presentes nos muitos desenhos de Jorge Martins, é deste mergulho no tempo, deste tempo que se dobra e volta a surgir, que aqui se trata. Quase como o próprio universo que, segundo alguns físicos, é tão plano como uma folha de papel.Uma última referência para o conjunto de cadernos e diários que a FCC expõe em diversas vitrines, e que surpreendem pela constância do pensamento do artista e, mais uma vez, pela diversidade dos assuntos abordados. Sara Antónia Matos destacou alguns dos aforismos do pintor que descobriu na sua leitura e, destes, relevamos aquele que abre o livro da exposição: Nulla dies sin linea, ou seja, “Nenhum dia sem linha”. Ou, melhor, sem desenho.?
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