Um gene que “vale por dois” descoberto por equipa portuguesa

Nas plantas, os cientistas observaram funções distintas desempenhadas pelo mesmo gene nas raízes e nas folhas.

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A Arabidopsis thaliana foi a planta usada nos estudos da equipa portuguesa Raquel Carvalho/Instituto Gulbenkian de Ciência

A equipa coordenada pela bióloga Paula Duque, do Instituto Gulbenkian de Ciência, em Oeiras, descobriu um gene nas plantas que comanda o fabrico de duas proteínas completamente diferentes e com localizações diferentes. É caso para dizer que este gene vale literalmente por dois.

A ideia de que cada gene comanda o fabrico (codifica) de uma única proteína começou a ser questionada há alguns anos, explica um comunicado do Instituto Gulbenkian de Ciência (IGC). Até porque, com a conclusão dos trabalhos de descodificação do genoma humano em 2003, percebeu-se que, afinal, não tínhamos os tais 100 mil genes de que se falava, mas muito menos. Nos humanos, os genes que codificam proteínas são cerca de 20 mil a 25 mil, mas as estimativas é que existam no corpo humano cerca de 500 mil proteínas.

Na edição online desta sexta-feira da revista The Plant Cell, a equipa de Paula Duque – que inclui investigadores do Instituto Superior Técnico de Lisboa, do Instituto de Ciência e Tecnologia da Áustria e da Universidade de Ghent, na Bélgica – relata a descoberta do gene ZIFL1, com base em estudos numa planta muito utilizada como modelo pelos cientistas, a Arabidopsis thaliana. Na sua raiz, os cientistas observaram que o ZIFL1 codifica uma proteína importante para o transporte da auxina, uma hormona essencial ao crescimento e desenvolvimento das plantas. Nas folhas, verificaram que o ZIFL1 origina uma proteína que confere tolerância à seca.

“O gene apresentado neste estudo é um dos poucos identificados que é capaz de produzir duas proteínas com papéis biológicos tão diferentes”, sublinha o comunicado. “Tanto quanto sabemos, não existem muitos casos de proteínas codificadas pelo mesmo gene que tenham funções biológicas tão diferentes”, acrescenta por sua vez Paula Duque, dizendo que geralmente as várias proteínas originadas por mesmo um gene têm funções semelhantes.

Na Arabidopsis thaliana, a equipa estudou assim o papel deste gene que pertence a uma família de genes presentes em todas as classes de organismos. Embora se desconheça a função de muitos, sabe-se que essa família de genes fabrica proteínas que estão nas membranas das células e permitem a passagem por aí de pequenas moléculas.

Combater à seca

Ora, ao estudarem plantas geneticamente modificadas para serem incapazes de produzir a proteína ZIFL1, os cientistas descobriram que ela tinha efeitos em diferentes órgãos e diferentes funções. Por um lado, as raízes das plantas mutantes tinham problemas de crescimento, de ramificação e orientação, o que sugeria o envolvimento do gene ZIFL1 no transporte da hormona auxina, importante no desenvolvimento da raiz. Por outro lado, as essas plantas tinham dificuldades em resistir à escassez de água: os poros das folhas que regulam a transpiração (os estomas) estavam mais abertos do que nas plantas normais e o resultado foi uma maior perda de água. Isso sugeria que o gene ZIFL1 também desempenhava um papel no fecho dos estomas e no controlo das perdas de água pela planta, o que pode ser crítico em condições de seca. “No futuro, pode ser importante para a agricultura identificar proteínas que permitam fechar rapidamente os estomas”, diz Paula Duque ao PÚBLICO.

Intrigados com estas observações, relata ainda o comunicado, a equipa foi ver se o gene ZIFL1 podia originar duas proteínas diferentes que actuariam de modo distinto em tecidos diferentes das plantas. Concluíram que sim.

Foram então ver o que acontecia, focando-se num mecanismo genético conhecido – o “splicing alternativo” –, que permite que um mesmo gene produza múltiplas proteínas. Nos seres humanos, os estudos indicam que mais de 90% dos 20 mil a 25 mil genes que codificam proteínas sofrem splicing alternativo. Caso contrário, não seria possível fabricarmos mais de 500 mil proteínas.

Quando os genes são activados para produzir proteínas, o ADN começa por ser copiado sob a forma de uma molécula intermédia – o ARN –, que pode ser processada de diferentes formas. “Este processo de ‘corte e costura’ pode originar diferentes moléculas de ARN que podem depois ser convertidas em diferentes proteínas”, explica ainda o comunicado.

No caso do gene ZIFL1, o splicing alternativo origina duas moléculas de ARN, com apenas duas diferenças nas suas “bases” químicas, ou “letras”, mas que acabam por ter grande impacto nas proteínas produzidas. Uma delas é muito maior do que a outra em termo do número de tijolos (ou aminoácidos) que a compõem.

Na fase seguinte da investigação, a equipa observou que, nas raízes, apenas se encontrava a forma longa da proteína (chama-se ZIFL1.1), enquanto a forma curta só estava presente nas folhas (ZIFL1.3).

Para Paula Duque, é “fascinante” que a diferença de apenas duas “letras” na molécula de ARN resulte na “produção de duas proteínas que desempenham papéis essenciais quer no transporte hormonal quer na tolerância à seca”.
 
 

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