Homem morreu soterrado abraçado à filha, que sobreviveu

Deslizamento de terras na ilha de São Miguel fez três vítimas mortais. Quem sobreviveu ao "trambolhão" descreve um cenário desolador.

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Corpo do pai da criança foi o primeiro a ser retirado ainda durante a noite Rui Pedro Soares

O temporal abateu-se sobre o lugar de Burguete, na freguesia do Faial da Terra, em São Miguel, como “um sopro”. Em pouco tempo, um deslizamento de terras deixou soterradas três casas. Numa delas vivia um homem, com 50 anos, que morreu na cama abraçado à filha, de cinco. A menina sobreviveu.

“O pai, António Americano, estava numa posição de protecção da filha”, contou ao PÚBLICO o presidente da Câmara da Povoação, Carlos Ávila. Coberta de lama e com “ramos e terra na boca”, segundo relataram os vizinhos à Lusa, a criança estava viva e foi retirada de casa, juntamente com a mãe e as irmãs de oito e 16 anos, ilesas.

O homem estava já morto quando os bombeiros chegaram, pouco depois da meia-noite. Mas não era o único. Na casa ao lado, que ficou completamente soterrada, moravam dois irmãos com cerca de 30 anos, que não conseguiram escapar. Segundo o autarca, os dois irmãos viviam sozinhos e eram portadores de deficiência, o que terá dificultado a fuga.

Os dois homens tinham passado o dia no centro de apoio da Santa Casa da Misericórdia da Povoação, como habitualmente, e regressaram a casa ao final da tarde. Foram apanhados pela derrocada e as equipas de socorro apenas conseguiram recuperar os corpos ao início da manhã desta quinta-feira.

Os vizinhos que se salvaram descrevem um cenário assustador. “Foi como um sopro, em segundos estava tudo destruído”, conta João Silva, de 47 anos. Faltava pouco para a meia-noite quando o homem ouviu um vento estranhamente forte. Conseguiu fugir, com a mulher, Noémia, a filha e a neta de quase dois anos, saindo por uma janela. A família está agora abrigada na Casa do Povo de Faial da Terra, tal como cerca de dez famílias da zona, cujas casas ficaram danificadas.

A casa onde viviam, arrendada ao governo regional, ficava mesmo na base de uma enorme encosta cheia de árvores que, durante a noite, deslizou, lançando lama, pedras e árvores em cima de três habitações.

Um "filme de terror"
Roberto Santos, 38 anos, vive um pouco mais abaixo, no centro da freguesia, a 300 metros do local do deslizamento, onde chegou “à meia-noite e cinco”, depois de ter ouvido perfeitamente o “trambolhão”.

Os dois irmãos que morreram eram seus primos, um deles “não tinha uma perna”. Olha para as casas destruídas e lembra-se de “um filme de terror”, mas já sabe que, quando há uma derrocada assim, depois de dias a fio de muita chuva, “arranca tudo, não há perdão”.

As casas destruídas, apesar de terem “cem anos”, segundo o presidente da Câmara da Povoação, estavam recuperadas. A causa do deslizamento, disse à Lusa, foi a “enorme quantidade de chuva” que caiu nos Açores nos últimos dias. Por outro lado, “a zona é propícia a isso”, por ser “muito montanhosa” e a infiltração da chuva originar estes “movimentos de vertente”.

Mas há quem diga que nem sempre foi assim. Álvaro Tavares, padrinho de um dos irmãos que morreram, chegou ao local com o nascer do dia e lembra que na freguesia do Faial da Terra já viveram 2000 pessoas, estando hoje a população reduzida a 200.

Nesses tempos, antes da emigração maciça, todas aquelas encostas estavam cultivadas com vinha, diz, e os terrenos eram menos movediços. Depois, com o abandono dos campos, o mato e as árvores tomaram conta de toda a zona.

Enquanto os homens observam os trabalhos dos bombeiros, as mulheres preferem o abrigo da Casa do Povo. Entre conversas, lágrimas e também já alguns sorrisos, vão ouvindo Noémia contar que esta é a segunda derrocada que lhe atinge uma casa e sempre sobreviveu. Acredita que acontecerá o mesmo quando vier a terceira.
 
 

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