Vanda, uma iluminação profana

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Uma longa entrevista, a acompanhar a edição em DVD de No Quarto da Vanda, fornece matéria que vai muito para além do making of e da auto-interpretação: é uma incursão poderosa do cineasta na sua obra.

Um Melro Dourado, Um Ramo de Flores, uma Colher de Prata.
No Quarto da Vanda - Conversa com Pedro Costa
Cyrill Neyrat / Pedro Costa
Midas Filmes / Orfeu Negro

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A primeira edição, em Portugal (já tinha sido editado no estrangeiro), do DVD do filme de Pedro Costa No Quarto da Vanda (2000) seria, por si só, motivo de júbilo. Mas há uma razão suplementar que a torna ainda mais preciosa: O DVD vem acompanhado de um livro, uma Conversa com Pedro Costa (com imagens escolhidas e legendadas pelo próprio), longa entrevista ao cineasta feita por Cyril Neyrat, que foi crítico na revista Vertigo e membro da redacção dos Cahiers du Cinéma (o livro pode ser comprado autonomamente). Não receemos ser superlativos: esta entrevista é um documento poderoso, que age inevitavelmente sobre o modo de vermos o filme e de entendermos a experiência (muito mais do que estética e cinematográfica) que nele está em jogo. Precisamos de recuar muito no tempo para encontrarmos em Portugal um autor - em qualquer área da produção artística ou literária - que fale do seu próprio trabalho com a mesma lucidez, o mesmo empenhamento reflexivo, a mesma capacidade de nos fazer perceber que o jogo mais inocente da arte (como dizia Hölderlin da poesia) é afinal um jogo extremamente perigoso. O que Pedro Costa diz da ficção, da narrativa, da relação da memória com o contar, deveria fazer corar de vergonha a maior parte dos nossos jovens romancistas entertainers.

Vanda é um nome próprio, o nome de uma pessoa, mais do que de uma personagem, porque o pressuposto ético e estético deste filme, como explica, o seu autor, é o da "crença na presença" de uma pessoa: "Tudo começa aí, pela presença inteira de alguém." A palavra "presença" está cheia de conotações teológicas (veja-se, por exemplo, a noção de "presenças reais", em George Steiner), mas se há alguma mística em Pedro Costa é a da pura imanência. E Vanda trouxe consigo, na sua inteireza e excesso de presença, uma figura lendária, como o Ventura. Ela operou uma deslocação no modo de filmar: "Este encontro permitiu que me libertasse completamente da idealização dos meus primeiros filmes, da cinefilia que me sufocava." Vanda, com todo o seu poder narrativo, foi a descoberta de um método: as personagens são os argumentistas e o filme abdica de um guião prévio. Assim, o filme decorre de uma necessidade imanente, de uma imposição que Pedro Costa formula nestes termos: "Pus-me à frente de Vanda, acreditei em mim, nela, no cinema."

Mas qual é a cena originária, a pré-história deste filme? Ele parte de um convite da própria Vanda, no bairro das Fontainhas: "Vem fazer um filme no meu quarto." Ou então: "As minhas palavras vão-te mostrar o bairro." Tratava-se de um desafio, vindo de alguém que tinha sentenciado: "Não acredito nem por um momento que me podes conhecer." O quarto, de seis metros quadrados, onde Vanda habita com a irmã, Zita, será então o lugar onde se instala durante mais de um ano o cineasta, e de onde ele vai também apreender a vida do bairro (que está, ao mesmo tempo, a ser demolido). Fumador passivo da heroína que no quarto é consumida, ele não consegue filmar sem ocupar o espaço da cena e sem correr os riscos inerentes ("A heroína dá-te uma força extraordinária, torna-te mestre absoluto de tudo, mas só fazes parvoíces."). E isto é o contrário de uma rodagem: "Uma rodagem tem um lado militar, policial: começa como uma rusga e depois desaparece, tal como a polícia." E o que é que pode resultar daqui? Um documentário, uma ficção? O convite para filmar no quarto da Vanda parece supor a lógica do documentário. Mas foi com "um desejo de ficção" que Pedro Costa entrou no quarto. E o resultado, como sabemos, subverte estas categorias de género porque a "presença" de Vanda vai-se revelar subversiva. O poderoso instrumento de que Vanda dispõe, e que faz dela uma máquina narrativa, é a memória ("É essa a minha matéria, o meu guião"), e essa é, pela sua própria natureza, ficcional.

Há um momento em que Pedro Costa diz que "podemos fazer um grande filme épico com um candeeiro, um sofá e um ramo de flores". A epopeia, a tragédia, o simples teatro de variedades são dimensões que perpassam em No Quarto da Vanda, às vezes quase simultaneamente, o que faz dele um filme que traz a memória de géneros exteriores ao cinema. E há, além disso, o espírito sensual e físico da música.

Aquele quarto é um lugar de onde se ouve todo o ruído profano do bairro (muito especialmente, as máquinas de demolição), mas ganha a dimensão de templo, onde o tempo mundano é interrompido. À partida, a convicção do cineasta era a de que "era preciso rebentar com o quarto romântico", e a de que "pensar o espaço é uma das bases do cinema". O espaço, acrescentemos, é uma das categorias da narrativa. Ora, o grande segredo deste filme está no modo como ele consegue colocar-nos perante os elementos arquetípicos da narrativa (reactivando uma força narrativa primordial), sem que no entanto haja nele uma história (pelo menos, uma história agenciada segundo as convenções que se tornaram o grande artifício do cinema). E, aqui, as reflexões de Pedro Costa, na sua conversa com Cyril Neyrat, sobre o que é ficção e realidade, o que é uma narrativa e a sua relação com a experiência, têm um longo alcance, que vai para além do profundo exercício de reflexão sobre o seu próprio trabalho.

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