As Promessas são para cumprir?

Fantasporto homenageia António de Macedo, o precursor do cinema fantástico em Portugal

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ENRIQUE VIVES-RUBIO

A edição de 2013 do Fantasporto presta o devido tributo a António de Macedo, para muitos o precursor do cinema fantástico em Portugal. Homenagem importante para todos os cinéfilos, que assim poderão ser presenteados com o visionamento de alguns dos filmes do realizador de “Domingo à Tarde” e, porque não, despertar o interesse pelas bobines empoeiradas dos cineastas do Cinema Novo português. Eu fiz isso mesmo. Fui buscar uma dessas bobines empoeiradas (não uma bobine, nem empoeirada) e revi o primeiro filme português a ser selecionado para o Festival de Cannes, “A Promessa”.

Com base na peça homónima de Bernardo Santareno, a adaptação de Macedo amplia exponencialmente a história desafortunada de José e Maria do Mar. Adaptar uma peça de teatro exige uma consciencialização da liberdade que o cinema permite e António de Macedo não descurou essa oportunidade.

Aproveitando o facto de não estar preso a um palco, a cenários, à quantidade de personagens em cena, o realizador tornou a peça mais estimulante. Apresentou ligações românticas entre Mário (na peça, Jesus), irmão cego de José, e Joaquina, transformou contrabandistas em ciganos que vendem relíquias, dotando um deles com um discurso misticista em surdina e, acima de tudo, aponta o dedo ao mercantilismo da Religião.

Honestidade e desejo

Envoltos neste mundo cheio de enganos estão José e Maria do Mar. O primeiro, símbolo de honestidade; a segunda, símbolo da força do desejo. Ambos presos a uma promessa: para salvar o pai de José, Salvador, de um naufrágio, o casal, em desespero, promete a Deus um matrimónio em castidade. Salvador consegue chegar a terra (é cuspido pelo mar) e os jovens cumprem a promessa. Quase um ano após o casamento, a promessa não foi ainda quebrada. E, como se antevê, graves problemas poderão surgir para José e Maria.

Este método de pedir ajuda divina é recorrente em comunidades piscatórias. Já a mãe de Mário fizera uma promessa quando ainda estava grávida dele. Iria oferecer um vestido bordado a ouro e trinta notas de cem se a N.ª Sr.ª dos Navegantes salvasse o José. E, se isso não acontecesse, que ficasse cego o menino que trazia no ventre. Observando a realização, é imperativo salientar o exemplar aproveitamento da conhecida “nortada” que assola as zonas costeiras do Atlântico. Macedo influi o espetador a olhar para o lado, a arranjar o colarinho da camisa, a sentir o vento que não acalma. O experimentalismo na realização, através da já citada “nortada”, do excesso de loops e slow motions (a violação e rapto de Joaquina é incontornável), da cor, dos planos dos rostos de um povo cansado de infortúnio (o filme é de 1972) e centrando-se mais na imagem do que no seu conteúdo, afasta este filme da temática da escola do Cinema Novo, ao contrário do já referido “Domingo à Tarde”.

Curiosamente, foi um filme bastante apreciado internacionalmente e a prova está na seleção para Cannes e para diversos festivais, incluindo prémios em Teerão e Cartagena. “Não se deve prometer nada que esteja acima das nossas forças”, diz o padre João a Maria.

A frase, além de súmula do enredo do filme, está também dotada de uma atualidade cortante. Também nós vivemos com o arrependimento, mas o arrependimento da crença em promessas que sempre estiveram acima das forças de quem as fez. Se todo este texto não serviu para espicaçar a curiosidade, acrescentarei apenas que ver “A Promessa” equivale a ver também o primeiro filme português a mostrar dois corpos nus.

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