Europa 2063

Ando zangado com este continente. Abracei a causa europeísta há três décadas em parte devido à suicidária idiossincrasia do meu país. Uma espécie de Erasmus vitalício

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Michaela Rehle/Reuters

Não, não consigo vislumbrar como será a Europa de 2063. Muito provavelmente, já cá não estarei. Ainda me sinto jovem, e se calhar até beneficiarei das recentes descobertas apregoadas por geriatras e geneticistas. Mas, caramba, 2063 é mesmo muito longe...

Mais: ando zangado com este continente. Abracei a causa europeísta há três décadas em parte devido à suicidária idiossincrasia do meu país. Uma espécie de Erasmus vitalício. Agora, europeu de corpo e alma, com uma família estónia e residente catalão, vejo-me a braços com nova tentativa. De suicídio, digo. Que mal fiz eu para tão malquista existência? Nos meus pesadelos estrelados estou farto de ver ceifeiras da morte a entoar o Hino à Alegria. E logo de Beethoven, que até era surdo. Não obstante, vou a jogo. Faço-o pela minha bebé de 19 meses, que, essa sim, é ainda mais europeia do que eu e terá mais probabilidades de por cá andar nessa altura.

Avancemos, pois.

Após 72 horas de espera, há que fazer reserva, icei-me com a pequenina Agnes à cúpula do Bundestag. É não só bonita, atributo que qualquer oráculo deve possuir, como serve de panóptico desta Berlim neo-imperial. Claro que a bebé Agnes não se apercebe do asco que isto tudo me provoca cá nas entranhas e fixa os seus olhitos na bandeira tricolor, que ondula serenamente. Aponta e volta a apontar, e aponta novamente, e sinto-me obrigado a pronunciar a palavra "bandeira", primeiro em português, só depois em estónio, coisas de uma educação bilingue. Ela repetirá um tanto atabalhoadamente, embora de forma bem sonora. Foi nesse momento que um dos membros do nosso grupo nos chamou a atenção: "Já repararam que a bandeira está de pernas para o ar?"

Não, não tinha reparado. Ainda hoje não sei se é a lista preta ou a amarela que fica virada para cima. A vermelha, essa, é mais fácil, representa o sangue e fica sempre no meio. "Mas olhe que faz toda a diferença", observou o nosso interlocutor, que se apresentou como italiano de Génova. Aquela surdina elevou-se e mais alguns visitantes revelaram curiosidade. A saber, dois gregos, um irlandês, um casal anglo-sueco, uma família catalã e três letões russófonos. Gerou-se inclusive alguma polémica, pois nem todos concordaram que a bandeira estava de pernas para ar. Com diplomacia, pedi licença e prossegui a visita com a minha bebé.

Já mais alerta, outras coisas estranhas fui detectando no horizonte de Berlim. Desta vez nem ousei pronunciar as palavras, pois tive receio que a pequenina Agnes as papagueasse. Confesso que, de quando em vez, cheguei a sentir medo. Muito medo. Nas bandeiras azuis em torno do Bundestag, por exemplo, havia agora uma estrela enorme, gigantesca, qual sol elefantino, plantado no centro e que esmagava as outras onze estrelitas.

Sintomático, quando completámos os 360 graus da visita, os excursionistas ainda se digladiavam sobre a posição da tricolor. Estuguei o passo e, antes de entrar no elevador, não resisti. Com alguma solenidade que a Agnes não terá totalmente percebido, roguei-lhe: "Se quando fores crescida aquela bandeira continuar assim, foge para a Austrália. Se calhar até vamos todos muito em breve... A tua geração está perdida. Não vais ter emprego, vais ter de pagar a minha pensão, vais consumir-te nestas patéticas discussões, votarás desalentada numa sociedade de velhos, vais viver numa democracia de tecnocratas desalmados, terás amigos cujo desporto é espancar gente de pele mais escura, vais..."

Credo. Basta... Se me arrependo da visita ao Bundestag? Nada. Tive inclusive uma ideia que, confesso-vos, e perdoem-me a imodéstia, me pareceu brilhante: “Bebé, esquece a Austrália... Vamos mas é mudar-nos para aqui. O papá e a mamã vão sofrer um bocado, claro, mas daqui a uns anos já falamos todos esta língua esquisita e depois naturalizamos-te. Esta gente não entende o nosso continente. Lá por 2063 haverá eleições para o Bundestag e quem sabe se tu não serás a chancelerina...”

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