“O futebol é vítima” das apostas ilegais

Entrevista a Emanuel de Medeiros, director-executivo da Associação das Ligas Europeias de Futebol Profissional.

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Emanuel de Medeiros considera o futebol uma vítima das apostas ilegais Enric Vives-Rubio

Emanuel Medeiros, director-executivo da Associação das Ligas Europeias de Futebol Profissional, fala ao PÚBLICO do problema das apostas ilegais, considerando-o “um caso de polícia” de que o “futebol é vítima”. Mas também promete que as Ligas actuarão de “forma implacável sobre quem puser em causa a verdade desportiva”. Pelo meio, critica a Comissão Europeia e os governos pela demora na legislação sobre as apostas online.

PÚBLICO: Ficou surpreendido com a dimensão da rede que manipulava jogos de futebol e que foi desmantelada pela Europol?
Emanuel Medeiros: Pode-se questionar o sentido de oportunidade e o propósito da acção mediática que a Europol protagonizou na semana passada. É evidente pelas ondas de especulação que suscitou. Isso pode ser questionado, mas não há dúvida que não surpreende o facto de haver quem se procure servir do futebol para acumular proventos, inclusivamente de forma ilegal. O futebol profissional é a modalidade desportiva de maior expressão à escala mundial. É a mais apelativa, a mais popular e é um cluster que anualmente gera 17 mil milhões de euros de receitas directas. É natural que seja um sector apetecível para quem, com escrúpulos ou sem eles, o encare como uma fonte de negócio. A EFPL, de há anos a esta parte, tem chamado a atenção, nomeadamente em Portugal, para a necessidade de se adoptar uma postura proactiva e de, pela via legislativa, se regular e disciplinar o mercado das apostas desportivas. Isso convoca não só o movimento desportivo, mas também os governantes à escala nacional e europeia para tomar medidas. O anúncio feito pela Europol vem consubstanciar as nossas preocupações.

Acha que a Europol não devia ter divulgado a investigação da forma como o fez?
Isso não questiono. Julgo que hoje em dia as apostas desportivas se transformaram num tema popular e estão na agenda. E ainda bem, porque é um assunto sério. Mas deve-se ter muito cuidado, para não criar uma suspeição generalizada, que ponha em causa a credibilidade do fenómeno [do futebol]. Muitas vezes, mais do que o problema é a ameaça do problema que contribui para afectar a imagem de credibilidade do desporto.

Mas já houve casos na Alemanha, em Itália, no Leste europeu. E os especialistas dizem que as apostas são uma das grandes ameaças à credibilidade do futebol. Não concorda?
Eu próprio e a EPFL fomos os primeiros a pôr o dedo na ferida. No dia da conferência de imprensa, solicitei esclarecimentos ao director da Europol sobre o anúncio que tinha acabado de fazer. Pretendo saber que Ligas e jogos foram afectados, se são situações antigas e já reportadas do nosso reconhecimento, porque seguimos política de tolerância zero relativamente a quem ousa pôr em causa o nosso sector.

Já tem mais pormenores sobre os jogos afectados?
Vai haver uma reunião em breve e teremos oportunidade de, no recato dos gabinetes, tratar dos assuntos e tomar as acções que se impõem. A credibilidade do futebol é um valor inegociável e não podemos assistir de forma passiva a tudo aquilo que possa bulir com a imagem e a reputação do futebol.

Alguns especialistas têm dito que o grande risco de manipulação de jogos está em ligas e clubes mais pequenos, porque é mais fácil aliciar os intervenientes do que nos grandes campeonatos, onde os jogadores ganham mais. Neste caso detectado pela Europol, já se fala de jogos de competições como a Liga dos Campeões…
Enquanto não tiver dados concretos da parte da Europol, não estou disponível para patrocinar qualquer cenário. Só me debruço sobre factos e não sobre potenciais indícios. Queremos saber quais são as situações concretas. Organizamos 500 jogos em média por fim-de-semana na Europa e iremos actuar de forma implacável sobre quem puser em causa a verdade desportiva.

Como é que se combate este fenómeno?
Existem apostas ilegais, que estão fora do circuito e que são dominadas por sindicatos que se dedicam ao crime organizado, com forte presença no Leste europeu e na Ásia. E existe depois todo um outro circuito relacionado com apostas pela Internet, que não sendo propriamente ilegais, não são exploradas ao abrigo de uma licença. Essa licença obedece a imperativos de interesse público definidos pelos Estados e que requerem, do nosso ponto de vista, o consentimento dos organizadores das competições. Temos procurado sensibilizar a Comissão Europeia e os governos nacionais para a necessidade urgente de regular este sector das apostas.

Sei que já há alguns sistemas para monitorizar os padrões de apostas e tentar detectar eventuais tentativas de viciação. Isso é suficiente?
Evidentemente não há nenhuma receita milagrosa. Mas há um cocktail de medidas que deve ser aplicado de forma global e concertada. Em primeiro lugar, é necessária legislação adequada, o que compete à Comissão Europeia e aos Estados-membros. Depois tem de haver, da parte do movimento desportivo, um conjunto de medidas visando educar todos os participantes nas competições, nomeadamente criando códigos de conduta para observar regras que evitem situações de conflitos de interesse e quebras de deontologia. Em 2010, a EPFL já aprovou um código de conduta que prevê recomendações que estão a ser implementadas em todas as Ligas europeias até ao início da época 2013-14. Prevê um conjunto de incompatibilidades destinadas a todos participantes nas competições, sejam eles futebolistas, dirigentes, treinadores, árbitros, massagistas.
Depois, temos sistemas de aviso prévio, que implicam a monitorização permanente do mercado de apostas da Internet, 24 horas por dia, de forma a detectar padrões irregulares que indiciem tentativas de viciar jogos

Isso significa detectar apostas que prevejam resultados muito volumosos, por exemplo?
Significa detectar padrões que na análise dos técnicos especializados indiciem estar em curso uma tentativa de viciar o resultado de uma competição. Isto implica um forte investimento das Ligas. Foram pioneiras, a começar pela Alemanha em 2005, depois do caso Hoyzer [um árbitro que viciou jogos]. E temos actualmente todas as Ligas cobertas por este sistema imunitário, directa ou indirectamente. Algumas com contratos com empresas especializadas, outras recorrendo aos sistemas da FIFA e da UEFA. Estes sistemas permitem accionar mecanismos preventivos e espoletar todo o arsenal de meios.

Que passa pela colaboração com as autoridades policiais e judiciais…
Com certeza. Os aspectos essenciais são uma política legislativa adequada, por forma a combater as apostas ilegais e defender os consumidores, com enfoque na protecção de menores e ressocialização de indivíduos com adição pelo jogo, a integridade das competições e viabilidade económica do desporto. Isso implica, tal como feito em França de forma rápida, que qualquer operador de apostas se pode candidatar a uma licença, mas requer um parecer positivo por parte da Liga, entidade que também é competente para definir que apostas são admissíveis. Isto porque nos desportos individuais, que apresentam grau de vulnerabilidade maior, pode não ser desejável a existência de apostas. É que há apostas desportivas que são perniciosas.

Quer dar algum exemplo?
Apostar quem vai ser o primeiro a sofrer um penálti ou a ver um cartão vermelho são situações que podem pôr em causa valores essenciais da verdade desportiva.

O presidente FIFA veio dizer que é impossível impedir a batota no futebol. Que comentário lhe merece esta afirmação?
Talvez o que ele queira dizer é que os organismos desportivos têm feito tudo o que está ao seu alcance para evitar o que ponha em causa a verdade desportiva e a integridade das competições. Temos colaborado sem reservas com as autoridades policiais. Agora é inegável que não dispomos dos meios e da jurisdição para fazer investigações visando organizações criminais que possam estar a agir neste sector. Este é um assunto de polícia, que exorbita as nossas competências. Daí que seja necessária uma acção concertada entre organismos desportivos, o legislador e as autoridades policiais e judiciais. Também quero dizer que nada disto é gerado pelo futebol. O futebol é vítima. São fenómenos sociais e que vitimizam o futebol.

As apostas legais e ilegais geram 200 mil milhões de euros por ano. Ao mesmo tempo que podem ser fonte de financiamento importante, por via dos patrocínios aos clubes e dos direitos de imagem, também são ameaça. Como compatibilizar estas duas vertentes?
É precisamente por isso que nos batemos. Havendo regulamentação, conseguiremos manter a integridade das competições e assegurar a viabilidade financeira do desporto. O futebol é uma indústria de conteúdos. É nesses conteúdos que reside a principal fonte de financiamento e a preservação desses conteúdos deve ser protegia por lei, como existe para outras indústrias. A exploração de apostas desportivas deve protegida por lei e deve implicar um justo retorno financeiro para os organizadores das competições. Sem desporto, não há apostas desportivas. Estimativas de 2012 apontam para lucros na ordem de 50 mil milhões de euros das empresas de apostas desportivas na Internet. Desse valor, quanto é que o futebol recebe? Nem recebe contrapartida, nem tão pouco lhe é pedido consentimento. Há um vazio legal que persiste mais do que devia. Não entendemos a passividade da Comissão Europeia e de muitos governos nacionais.

O processo das apostas online em Portugal continua por terminar. A legislação já devia ter avançado?
O assunto está suficientemente debatido. O Governo muniu-se dos estudos que entendeu adequados, fazendo uma auscultação tão abrangente quanto possível. Creio que haverá uma decisão a breve trecho. Também não se entende por que a publicidade [a empresas de apostas] não é permitida, o que prejudica os clubes portugueses. Em qualquer jogo do Real Madrid na TV portuguesa vê-se publicidade a uma casa de apostas nas camisolas. Portugal está ao nível da Sérvia e da Ucrânia neste domínio e isto é insustentável. Ao Governo cabe combater o jogo ilegal.

E Estado também receberá receitas…
Sim. Mas hoje em dia não há política nenhuma. Não há política para a defesa do consumidor, nem para a protecção dos menores, que podem ter acesso indiscriminado ao jogo na Internet. Nem tão pouco de ressocialização dos indivíduos com adição ao jogo. Onde é que ela está? Urge um quadro legal que regule e discipline este fenómeno, e que permite às Ligas e federações garantir a sua sustentabilidade financeira.
 

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