Crítica de Música: Como se o encantamento fosse ainda possível

3,5 estrelas. Num Campo Pequeno praticamente esgotado, os Sigur Rós passaram por toda a sua carreira em quase duas horas de concerto.

Um dia depois da passagem pelo Coliseu do Porto, os Sigur Rós tocaram durante quase duas horas num Campo Pequeno praticamente esgotado
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Um dia depois da passagem pelo Coliseu do Porto, os Sigur Rós tocaram durante quase duas horas num Campo Pequeno praticamente esgotado Nuno Ferreira Santos
Um dia depois da passagem pelo Coliseu do Porto, os Sigur Rós tocaram durante quase duas horas num Campo Pequeno praticamente esgotado
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O concerto começou como jogo de sombras, tradução visual dos mistérios que a música dos Sigur Rós evoca Nuno Ferreira Santos

Em 2001, quando passaram pelo Cento Cultural de Belém, foram recebidos como maravilha que tudo encantava à sua passagem. Vinham de lugar nenhum, ou melhor, vinham da Islândia, mas a música parecia emanar de território mítico e não de um país real, e traziam consigo Ágætis Byrjun, segundo álbum que foi o verdadeiro início da sua vida. Em palco, tudo neles era embaraço pela atenção que lhes devotavam e timidez perante os aplausos que se prolongaram, após a última nota e o último suspiro de Jónsi Birgisson, pareciam não parar de se ouvir.

Em 2008, quando tocaram no Campo Pequeno a que regressaram quinta-feira, segunda data da passagem por Portugal, um dia depois do concerto no Coliseu do Porto, o feitiço tornara-se corriqueiro e a singularidade da música, inevitavelmente, um dado adquirido. Ainda para mais, a preciosidade do intimismo dera lugar a uma euforia de confetes, tambores e alegria pop decididamente estranha a quem não lhes punha a vista em cima desde os tempos longínquos da estreia no CCB.

Quinta-feira, num Campo Pequeno muito próximo de esgotado, não houve o encantamento do primeiro encontro – como poderia? – nem a incómoda sensação de ver uma banda a tentar jogar o jogo do estrelato de grande dimensão sem ter perfil para isso. Os Sigur Rós foram jogo de sombras (a início, com um pano translúcido a separar músicos do público), poder animista evocado manchas de electricidade (as criados pela guitarra tocada com arco de violoncelo por Jónsi) e sensibilidade à flor da pele que o público, ontem como hoje, acompanhou com silêncio embevecido.

Em palco, os velhos conhecidos Jónsi, vocalista e guitarrista, Georg Hólm, baixista, e o baterista Orri Páll Dýrason, a que se juntaram secção de cordas e de sopros e um par de músicos que, tal como os fundadores, se dividiram entre teclados, vibrafones, percussões. Onze erguendo muralhas sonoras de acordo com as mecânicas estabelecidas pelo pós-rock, mas desenhando também quadros sónicos gentis, ora sofridos, ora alienígenas, ora prenhes de felicidade – tal como a voz de Jónsi.

Quando os Sigur Rós surgiram no mapa musical, fizeram-se todas as analogias entre a sua música e os traços mais comuns da geografia e mitologia islandesa, os vulcões, as montanhas, o oceano, os duendes. Eles riam, protegidos pela língua impenetrável, e brincavam.É mesmo verdade, os islandeses acreditam em duendes. Mais sérios, confirmavam que sim, a natureza que os envolve e a insularidade tinham obrigatoriamente que encontrar caminho para a sua música.

Depois das quase duas horas de concerto, não passámos a acreditar em duendes, mas vimos o imaginário da banda de Takk...., através das luzes e vídeos projectados, complementar-se harmoniosamente com o som: o baile de máscaras de Vaka, a Untitled 1 de ( ), a tempestuosa Ný batterí, com a sombra de Jonsí crescendo, gigante, no pano na boca de cena, a desolação dos rochedos projectados em E-bow, batida marcial crescendo até atingir o peso existencial que Thom Yorke tornou imagem de marca na passagem do milénio. E as imagens subaquáticas de Sæglópur, caixinha de música que se transformou, quando a violência da distorção ganhou protagonismo, em catarse Swans (se os Swans pregassem a fragilidade como virtude); e a lenta ascensão de almas de Varúð, acompanhada com palmas no seu crescendo, uma das curtas liberdades a que o público se permitiu – porque os Sigur Rós são para seguir com reverência, intuímos.

No Campo Pequeno, mostraram-se canções do novo álbum em preparação, diluídas no restante repertório sem sobressalto (o concerto teve início, de resto, com uma delas, Yfirboro), e polvilhou-se o alinhamento com passagens por toda a discografia da banda.

Os Sigur Rós mostraram a força e a fragilidade da sua música. Neles, a exposição de uma alma dorida ganha barroquismo de pop de câmara (cortesia das cordas e metais) e o rock é matéria sonora feita de camadas de ruído em vagas crescentes (a guitarra de Jónsi, naturalmente). Neles, agora, não há a sensação de exclusividade: a filigrana de pianos e vibrafones tornou-se comum no cenário musical, adoptado por seguidores de línguas diversas, e a própria banda, como o prova a sua desequilibrada discografia, nem sempre consegue fugir a essa perda. Exemplo máximo: uma canção como Hoppípolla, que ouvimos depois de um tímido “obrigado por terem vindo”, a única quebra de silêncio entre canções do concerto, mostra como a singularidade se pode transformar em emoção descartável de anúncio publicitário, em banalidade pop que nada nos diz sobre o que tornou esta banda tão importante para tanta gente. Felizmente, teremos sempre Svefn-G-Englar. Foi a primeira do encore, foi aquela que começou tudo isto. É “a” canção dos Sigur Rós. Continua majestosa e inatacável no seu mistério, naquela união de órgão, mancha de guitarra e voz aparentemente nascida num lugar que a criatividade, por si só, não consegue explicar.

Com Svefn-G-Englar, seguida pela cavalgada final de Popplagið (a Untitled 8 de ( )), os Sigur Rós despediram-se como se o início não tivesse mais de uma década. A ilusão de que a surpresa e o encantamento são ainda possíveis. 
 
 
 
 

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