China: "Eu não emigrei, globalizei-me"

Emigrar deve ser das palavras mais feias do nosso dicionário. Se a aldeia é global, então eu não emigrei, globalizei-me

Foto
Suzie Wong/Reuters

É cliché falar de “globalização” e suas consequências — eu e o Obama estamos separados por seis pessoas, é fácil ir almoçar a Praga e sabemos sempre em tempo real a temperatura em Moscovo. Mas será que temos pensado nas consequências para o nosso trabalho? Que há alguém na Índia que faz melhor? Alguém na China que faz mais barato? Ou que alguém precisa de um português na Costa Rica?

A premissa é simples: se muita gente vende o mesmo, vão sobreviver os que vendem melhor e/ou mais barato. Se eu não consigo vender, tenho de vender outro produto ou ir vender para outro lado. E sim, emigrar são lágrimas porque custa sempre despedir de quem nos é querido e a saudade não mata mas mói. Mas não têm de ser lágrimas de frustração ou de solução-de-último-recurso. Aliás, emigrar deve ser das palavras mais feias do nosso dicionário. Se a aldeia é global, então eu não emigrei, globalizei-me. Para Pequim. E aqui continuo a viajar todos os dias porque não fui o primeiro “globalizado” a chegar cá. Ao almoço cada um compara com o seu país. E é engraçado perceber que o americano está cá porque não é fácil encontrar trabalho nos Estados Unidos, o francês igual e o alemão também.

E a China é um destino apetecível nestes dias. É verdade que aqui tudo é feito para ser rápido e barato. A comida vem pronta a ser empurrada para a boca, não há bifes para cortar ou pedaços para desfazer. Os apartamentos reduzem-se ao essencial. Não há grandes entradas e as salas quase sempre transformadas em quartos. Cozinha pequena, casa de banho dividida. Sanita é um luxo, buraco no chão é a norma. O chuveiro é isso mesmo — uma mangueira, chuveiro e um ralo no meio da casa de banho. Toma-se banho enquanto se limpa a casa de banho.

Numa cidade de 20 milhões, todos estão atrasados. É sempre uma luta pelo táxi, pela mesa, para entrar no autocarro. Todos buzinam, ninguém pede desculpa, não há tempo. Nas entradas empurra-se, os conceitos de fila e sobrelotação são desconhecidos. Cabem sempre mais dez. As passadeiras não são bons sítios para se estar. O trânsito é caótico e os sinais de trânsito são apenas sugestões. O vermelho nem sempre é vermelho e nunca se sabe quando um carro quer fazer inversão de marcha.

Quando entro num “restaurante” penso sempre, “é desta que o meu estômago não vai aguentar”. Mas aguenta sempre. O truque é não olhar para a cozinha. E nunca para o chão. A comida, essa, sabe sempre bem, mesmo quase sempre não sabendo o que é. A higiene não é uma característica deste país.

Sente-se um cheiro no ar muito próprio e indecifrável. Muitas vezes doce, por vezes sujo. Cheira a tudo. Comida, lixo, pessoas. Sei que fica em nós. Por estes dias, a densidade da poluição não deixa ver o fim da avenida e transforma os edifícios em sombras. O sol chega muito ténue, como um círculo bem delineado que se pode olhar de frente.

Não deixa de ser irónico que num dos últimos bastiões do império vermelho, o consumo esteja tão visível e furioso. Sente-se dinheiro nas ruas, vontade de comprar e de exibir. Existe um fluxo económico constante, muitas vezes em economias paralelas - carros que às vezes são táxis, motas com atrelados que rapidamente se transformam em mini-restaurantes, imitações de roupa, telemóveis e afins vendidos porta sim, porta sim.

E é fantástico como a nossa percepção muda. Cruzar com uma cara que não tenha os olhos rasgados é motivo para um sorriso cúmplice, como se de um velho amigo se tratasse.

Ficam sempre as histórias e as vivências. Essas não têm preço e vão fazer a diferença em horas de decisão. Quando percebemos que alguém antes de nós já tinha arriscado, percebemos que sair do país não tem de ser dramático. Globalizemo-nos.

Sugerir correcção
Comentar