“O Mundo a Seus Pés” (“Citizen Kane”), de Orson Welles (1941)

Espantosa a economia, a elegância, a eficácia. Espantoso que se faça um filme assim aos 25 anos! Génio?... Génio.

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Por certo, já aconteceu aos leitores (pelo menos, como contribuintes, já lhes aconteceu de tudo): saiu-lhes num concurso de batatas fritas uma viagem à Eurodisney ou um tio da América (o Brasil é na América) de visita a Portugal, deu-lhe uma boleia num saltinho a Paris, Londres, Roma ou outra capital europeia qualquer (afinal, a razão da visita a Portugal) e, num belo dia (e que belos são esses dias…), deram por si, finalmente, perante aquela obra de que lhe tinham chegado, via fama, TV por cabo ou Internet, representações várias, em papel ou em “pixels”. E, após aquela sensação de se estar na televisão – que é onde normalmente estão as coisas e as pessoas intangíveis (e as detestáveis também) – e de se terem certificado de que não estavam numa loja chinesa, deram por si a pensar (Paris é prodigiosa): “Então isto é que é a pintura mais célebre do mundo? Julgava que fosse maior… Porque estará toda esta gente a tirar fotografias em grupo aqui, quando há tantos jardins com melhor luz?… Onde é a saída?... Quanto me levarão, aqui, por uma água mineral?...”

Imagino que algo assim possa assomar a algumas cabecinhas se, porventura, forem apanhadas, à traição, em casa de alguém de cerimónia (isto é, onde haja alguma dificuldade em protestar ou de onde não se possa sair facilmente em busca de uma água mineral, isto é, uma cerveja), a ter que ver “O Mundo a Seu Pés” da mesma forma que, noutra casas, se tem que ver, digamos, a final de “A Casa dos Segredos XVII”, ou seja, como se fosse “natural” (há casas assim…). Aconselho-os a sair, já que não são condições para se apreciar “O Mundo a Seus Pés”. Não. O DVD salvou-nos de visões forçadas, de turistas em vias de obter documentação de que estiveram mesmo ali, no meio da confusão que geraram para obter essa documentação, enquanto arruinaram a experiência dos outros, dos simplórios com cara de ameixa seca que não usam espasmodicamente a máquina fotográfica nem falam como megafones em livre concorrência.

Portanto, conseguido o DVD, faça-se um silêncio religioso e garanta-se a presença apenas de quem consiga respeitar essa religiosidade. Ponha-se o DVD a girar (dentro de equipamento compatível) e ouça-se o silêncio do início, do genérico sem música, educando o ouvido e os modos do espectador para o que se vai seguir: uma tabuleta de “No trespassing”, uma rede, que a câmara vai subindo num movimento sábio, outra rede, de diferente trama, o cimo de um portão, um casarão na noite, lá em cima, ao longe, com uma janela iluminada, macaquinhos numa jaula, frentes de gôndolas, recantos de uma portentosa propriedade espreitados no escuro, de novo a janela iluminada, mais de perto, e mais de perto ainda (é um quarto), a luz que se apaga bruscamente, com um brusco acorde musical. De novo luz, depois neve sobre uma casa, que, afinal, estão dentro de um globo de vidro de brincar apoiado numa mão. Uma boca de homem diz “Rosebud”, a mão abre-se, o globo cai e parte-se sobre uns degraus. Uma enfermeira, observada numa reflexão em superfície esférica, entra, cruza os braços do homem sobre o peito, e, tenuemente iluminada, puxa-lhe o lençol da cama sobre o rosto recortado em silhueta contra a luz da janela.

Começa assim, com uma lição de cinema, este filme não só superlativo porque o classificam assim, mas porque o sentimos assim, plano após plano, sequência após sequência, sem fraquejar nos enquadramentos, na iluminação, na expressividade, na representação, na direcção de actores, no argumento, na música, na cenografia, na entoação, nas vozes, na voz de Orson Welles. Mais à frente, na história, uma conversa ao pequeno-almoço composta por parcelas de pequenos-almoços ao logo dos anos, em sequência, mostra-nos a evolução de um casamento desde o início romântico até ao azedo ocaso da regra geral. Espantosa a economia, a elegância, a eficácia. Espantoso que se faça um filme assim aos 25 anos! Génio?... Génio.

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