Os anos 1980 estão de regresso ao frigorífico dos portugueses

Quase 60% das famílias puseram travão aos gastos não essenciais e um terço admite ter dificuldades para cobrir necessidades essenciais. Compras de produtos frescos aumentam, descem as bebidas e lácteos

É um regresso ao passado. Mais concretamente, aos anos 1980. Os portugueses voltaram à cozinha e aos ingredientes mais tradicionais, e no frigorífico já não abundam queijos fatiados, iogurtes ou sumos. A crise financeira e as medidas de austeridade estão a mudar os hábitos de compra de forma profunda e rápida. E os dados mais recentes da Kantar Worldpanel, empresa de estudos de mercado, mostram a emergência de um novo perfil de consumidor: o “novo normal”, nas palavras de Sónia Antunes, directora da Kantar.

“Na alimentação voltámos a 1980, com menos consumo de lácteos ou bebidas e mais comida tradicional como o borrego”, ilustra. Símbolos da sociedade de consumo, os refrigerantes e sumos ficaram fora da lista de compras (caíram 10,6% o ano passado, em relação a 2011). O mesmo se passa com os produtos de drogaria, lácteos ou de higiene pessoal. Ao mesmo tempo, crescem os produtos frescos (5,3%) e a categoria “papel” (2,1%), que inclui papel higiénico, guardanapos ou rolos de cozinha. “Estamos mais tempo em casa”, justifica Sónia Antunes.

As famílias procuram opções mais em conta, confeccionam de raiz as refeições e cortam nos artigos menos essenciais e que ficaram mais caros com o aumento do IVA. “Está a desenhar-se um novo padrão de consumo, mais contido, reflectido e racionalizado que poderá ser considerado o novo normal, a vigorar nos próximos anos”, antecipa a responsável.

A crise não é sentida da mesma forma por todos os portugueses. Num olhar mais clínico, a Kantar divide as famílias em três categorias: as que não sentem a crise mas poupam por precaução (vivem no interior norte, têm mais de 65 anos), as que sentem “um pouco a crise” e cuidam das despesas não essenciais (classe média alta das cidades) e, finalmente, as que sofrem na pele os efeitos da recessão. Este último grupo já representa 27% dos lares em Portugal e inclui casais com filhos, entre os 35 e os 49 anos, da classe baixa e média baixa. Em 2009 representavam 22% dos lares questionados pela Kantar, cerca de quatro mil em Portugal Continental. Além disso, “é um valor superior aos 18% de pobres indicados pelo INE”, alerta Sónia Antunes, acrescentando que “estas pessoas têm dificuldade em chegar ao final do mês”.

As famílias mais afectadas compram nas lojas de discount, como o Lidl ou Minipreço e 43% dos produtos que escolhem são de marca da distribuição, mais baratos do que os das marcas da indústria. Rejeitaram os leites especiais, os sumos e refrigerantes com gás e o café solúvel.

Na lista de compras dos que sentem “um pouco” a crise (representam 57% da amostra), passaram a estar de fora os sumos naturais, as batatas e salgados congelados, ambientadores ou sobremesas lácteas. Já os mais velhos e moradores no interior, aumentaram o auto-consumo de produtos frescos (legumes e fruta que conseguem cultivar), deixando de os comprar nos supermercados.

Haverá luz nesta crise? A pergunta também foi colocada pela Kantar e deu nome ao estudo ontem apresentado. Paulo Caldeira, director de comunicação, revela que 76% dos inquiridos acredita que vão ser precisos mais três anos para respirar de alívio. O grupo dos optimistas é reduzido e não chega aos 5%.

Perante um cenário de sufoco financeiro, todos os elementos da família estão alinhados no mesmo raciocínio: controlo de gastos. Em 89% dos lares pais, filhos e avós estão envolvidos nesta estratégia, valor que compara com os 75% em 2009. Além disso, 85% dão “especial atenção” às promoções (eram 83%).

Neste contexto, 40% dos lares prepararam comida para levar para o trabalho. Em vez de irem ao restaurante almoçar todos os dias, os portugueses passaram a fazer refeições para consumir no local de trabalho. Em 2009, a percentagem de famílias a preparar marmita era 29%. “O tupperware tornou-se mainstream”, uma prática habitual, analisa Paulo Caldeira.

A alteração radical nos hábitos dos consumidores reflecte-se nas contas do comércio. Ainda ontem o gabinete de estatísticas da União Europeia revelava que o volume de vendas do retalho, em Dezembro, recuou 3,4% na zona euro e Portugal protagonizou a segunda maior quebra (8,6%).

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