A um Deus desconhecido

Num post antigo no seu blogue Tempo Contado, o escritor Rentes de Carvalho bradava um dia, naquele seu jeito de velho rezingão que tanto lhe apreciamos, contra a mitificação da aldeia enquanto símbolo do bucolismo, da paz e da pureza. Por alguma razão, escrevia Rentes, há nas aldeias uma arma em cada casa. O curioso é que Rentes passa meio ano na aldeia e, logo a seguir à ideia de memória, a aldeia, ou a oposição entre a aldeia e os novos modos que a cidade cria, é o seu tema de eleição. Avancemos para as duas primeiras canções do novo disco a solo de Manuel Fúria, Declaração de intenções e Estandarte. Nelas Fúria canta, respectivamente, “Só quero ver Lisboa a arder” e “Tem cuidado rapariga, tem cuidado com a cidade”. Relações não completamente resolvidas sempre deram bons motes artísticos, e neste caso o alvo de Fúria parece ser a cidade enquanto promotora do caos existencial, onde as regras desabam, a família rui e a corrupção alastra; o seu oposto, a pequena terra, o núcleo familiar, a igreja iluminada, é uma idealização - e como todas as idealizações, talvez não resista a tratados sociológicos, mas pode ser convincente e comovente quando atravessada de um sopro épico.

Essa é a principal marca de Manuel Fúria Contempla os Lírios do Campo, a grandiloquência sem redenção com que Fúria traduz o seu universo lírico para música: ao redor de guitarras e percussões que recordam a new-wave dos Joy Division e dos New Order, há metais, sopros, cordas e coros grandiosos que enfunam cada canção e a conduzem a um altar que arrepia. Discos assim dificilmente têm meio termo: ou são extraordinários ou arriscam o ridículo - mas sosseguem, porque Contempla Os Lírios do Campo está à altura das ambições de Fúria. A grandiosidade começa logo em Estandarte: guitarras a espadachar vão alteando até que no fim metais e sopros e um violino enlouquecido nos atacam de todos os lados. O disco galopa de imediato para Procuro a claridade, em que o duelo entre as guitarras e as cordas volta a assentar praça; a reverberação da guitarra e a batida recordam os New Order; as cordas lembram os Lunasa: a urbe industrial dá de caras com o campo, numa contradição abençoada. Numa sequência extraordinária, desagua-se em Que haja festa na aldeia, que nos agarra pelos colarinhos logo ao primeiro compasso, à conta daquele ataque à guitarra, reminiscente das bandas de gabardina dos anos 1980. É, de longe, a melodia mais pop do álbum, uma canção ambiciosa, com um trecho em que dedilhados de guitarra são suportados por um bombo, criando a tensão ideal para o crescendo final, marcado pela tristeza refinada do oboé que, a partir daqui, será figura de tomo no resto do disco. A canção seguinte, Jogo do sapo, é a primeira em que há minuto e meio de paz à guitarra acústica, sendo que inevitavelmente a cavalaria acaba por chegar (e novamente o oboé traz uma distinção única à faixa). Só à oitava canção é que Fúria acalma o disco, numa versão despida de À minha alma, (belíssimo) original de Os Velhos - é, aliás, a única canção que não navega em águas épicas.

Os cínicos poderão dizer que Contempla Os Lírios do Campo tem uma fórmula: uma linha melódica de guitarra em pára-arranca vai sendo acolitada por diversos instrumentos até no fim todos se unirem para atear a fogueira; os menos cínicos reconhecerão que se tratam de arrojadas canções sem freio. É difícil ficar indiferente aos inclassificáveis oito minutos de A Tempestade ou à batida explosiva de Canção para casar contigo. Quando por fim os acordes fundos à guitarra acústica com que Os Lírios do Campo abre são cercados pelos coros e pelo oboé, um não-cínico sente-se abalroado pela imensidão da canção, de todo o álbum.

“O que importa são os lírios”, canta Manel, “vinde todos e cantemos a canção”. Por certo notaram que Fúria está a parafrasear o Sermão da Montanha, em que Cristo apresenta aos homens as suas regras morais e condena o materialismo. Não, isto não é sobre Lisboa nem sobre a aldeia. Isto é sobre pertencer: a uma casa, um país, uma mulher - ou, no caso de um cristão, a algo maior do que o que conhecemos. O que é que um ateu faz com isto? Bem, um ateu, mesmo um ateu empedernido, não só pode respeitar a crença dos outros como comover-se com a comoção dos outros. Eu não acredito no que o Manel acredita; mas quando o Manel canta acredito nele. E talvez esta capacidade de uma melodia e uma harmonia nos levarem a acreditarmos no que não acreditamos seja o maior feito a que música pode aspirar. Por instantes ocorre que este é o A Um Deus Desconhecido dos putos de agora.

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