O Disney lunar de Philip Glass é ovacionado e "profundamente americano"

Críticas ao libreto, qualidade das interpretações e composição e sumo da temática, que ficciona um Walt Disney pleno de defeitos, do anti-semitismo à mitomania, absorvem a crítica espanhola.

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A ópera de Glass baseia-se no livro de Peter Stephan Jungk Javier del Real/DR
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Walt Disney é interpretado por Christopher Purves Javier del Real/DR
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A ópera oscila entre as recordações de um Disney ficcional e os seus últimos dias de vida, no hospital Javier del Real/DR
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"The Perfect American" estreou-se esta terça-feira no Teatro Real em Madrid Javier del Real/DR
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"The Perfect American" é uma encomenda do director do Teatro Real de Madrid Javier del Real/DR
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Philip Glass na Casa da Música, no Porto, em 2011 Paulo Pimenta
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A partitura da 24.ª ópera de Glass Javier del Real/DR
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Entre outros aspectos, Disney é representado como fortemente anti-sindicatos e a cena ilustra a greve dos animadores da Disney em 1941 Javier del Real/DR
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Abraham Lincoln é uma das figuras históricas convocadas para a ópera de Glass Javier del Real/DR

Não houve apupos, nem apoteose, mas a estreia mundial da 24.º ópera de Philip Glass, uma polémica adaptação da obra de Peter Stephan Jungk que retrata um Walt Disney sombrio, anti-semita, misógino, terminou com uma ovação. No entanto, a crítica espanhola assinala terça-feira à noite que afinal o compositor norte-americano teve "piedade" do pai da animação de massas norte-americana na estreia mundial de The Perfect American no Teatro Real de Madrid. Quanto à composição de Glass, o El Mundo chama-a "edulcorada"; o El País diz que "é profundamente americana".

Antes da subida da cortina e do início de The Perfect American, Glass dizia ao El País não estar muito nervoso, embora "nunca se possa prever a reacção do público". O compositor é o primeiro profissional de primeira linha a aceitar uma encomenda do Teatro Real e a estrear em Madrid a sua obra, tendo motivado uma enchente na noite de terça-feira com directores de outros teatros nacionais e internacionais e políticos na plateia.

A estreia de uma obra tão polémica aguardada há perto de um ano - e que viaja para Inglaterra em Junho, com a English National Opera - foi então bem recebida, com a crítica bastante focada, ainda, na história que Glass conta sobre o criador de figuras que deliciaram a infância e que povoam o quotidiano de grande parte do mundo desde o início do século XX. "Estas são as chamas em que ardeu ontem à noite a sua lenda criogenizada", escreve o El País. Segundo o diário, o libreto de Rudy Wurlitzer "tem como resultado final uma visão mais amável do protagonista do que no romance" homónimo de Peter Stephan Jungk que serviu de base à ópera. O El Mundo corrobora esta visão, sendo mais caústico: "o embaraçoso libreto de Rudy Wurlitzer" junta-se à "música edulcorada de Glass" para uma relativização do "retrato impiedoso" de Jungk.

O crítico do El País Vela del Campo descreve a obra como "profundamente americana" e precisa que tal como é habitual em Glass há um sublinhar pela orquestra da importância do texto, que Vela del Campo concorda ter perdido complexidade na passagem do romance de Jungk para o libreto de Wurlitzer. Há também um cariz "repetitivo" na música que "produz uma sensação quase hipnótica" que favorece as personagens, interpretadas por "um elenco vocal que se integra às mil maravilhas no conceito"

O mesmo El País, que precisa em reportagem que duas horas antes da estreia Glass estava algures no Teatro Real ao piano, a trabalhar noutras composições em curso, descreve a música como tendo "matizes cinematográficas", uma partitura "repleta de percussão e alardes rítmicos, [que] é fácil e agradável de escutar", destacando "a complexidade" da "execução dos 70 músicos no fosso" da orquestra - "extraordinariamente numerosa", assinala o El Mundo, elogiando a prestação dos percussionistas. Esse diário espanhol, pela mão do crítico Rubén Amón, é mais crítico em relação ao hype em torno da ópera, aludindo à possibilidade de as expectativas que fizeram com que cerca de 50 meios de comunicação pedissem acreditação para estar presentes na estreia de The Perfect American terem prejudicado a recepção da peça. O diário espanhol escreve esta quarta-feira que a temática e o alarde "prometiam um ritual iconoclasta" e que Glass propõe um olhar "condescendente, compreensivo e até lírico", mas a "sua música de mantras parece divergir das arestas do personagem", talvez pela fraqueza do libreto.

Conduzida por Dennis Russel Davies, maestro habitual de Glass, a ópera tem a direcção artística de Phelim McDermott - ambos elogiados pelo El Mundo - e a imprensa fala de um engenho em palco que permite de forma intermitente que o palco fosse tomado por um ecrã, um filme, além de uma grua que opera um jogo de projecções (nunca de imagens criadas por Disney, visto que os estúdios Disney terão dito Glass que "preferiam que não fizesse" a ópera) que tornam a narrativa uma oscilação entre o onírico e o real do quarto do hospital em que o animador morreu. Há também uma espécie de robô-Lincoln, o Presidente dos EUA que pôs fim à escravatura, com o qual o Disney interpretado pelo barítono Christopher Purves tem uma discussão sobre o tema, ou o retrato de Disney como um capataz de uma fábrica - os estúdios onde os animadores davam vida às figuras de Donald, Cinderela ou dos Sete Anões -, tudo numa ópera dividida em duas partes, uma sobre o mito, a outra sobre a forma como o mito se via.

The Perfect American é a primeira ópera dedicada à figura de Walt Disney e em Junho estará em Londres, mas antes continua a sua residência em Madrid, havendo planos para a edição em DVD do espectáculo, bem como a transmissão em diferido em canais de TV espanhóis, alemães, franceses e japoneses, bem como no canal Arte, na Rádio Clásica espanhola e, dia 6 de Fevereiro, pode ser vista em directo no site Palco Digital do Teatro Real.

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