Um vélo café para inglês (não) ver

Velocité Café. Atraquei lá numa tarde. Pedi um prego em bolo de caco, folheei alguma da ciclopédia que lá tinham e voltei no dia seguinte. E no outro

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17:30. A chuva ameaça. Enquanto uma multidão se evapora pelo Chiado acima, nós descemos. Serpenteando entre filas e cafés entornados, chegamos ao quilómetro zero da zaragata Pombalina. São 18:30. Faz uma hora que alguém sonhou arranjar mesa para lanchar na Baixa. Platónico. Começa a chover. Agulhas. Nas trincheiras de um alcatrão gasto, travo-me de razões com um guarda-chuva de 87 – disfuncional – que está na família há mais tempo do que eu. A chuva foi feita para a fotossíntese, não para o Homem. Atrasando o meu exímio triatlo entre poças, um simpático turista franco-qualquer-coisa pergunta pelo São Jorge, obrigando-me a ir vasculhar o passé composé a gavetas a que nunca mais tinha ido. 19:30. Vai ficando tarde para lanchar. Fica adiado para jantar e, depois, para nada. Devia ter guardado uma passa do Réveillon para isto. 20:30. Um desfile de estações de Metro até casa. Encavalitado entre uma caravana de escuteiros pouco afinados, medito. Que dia. E ainda tenho que devolver as chamadas não atendidas.

Lisboa devia vir com um manual de instruções. A Lisboa para lá do frenesim cosmopolita, aquela que todos procuram mas ninguém encontra, existe mesmo? Foi entre ruelas absintadas, escadarias obtusas e uma passerelle de calçada contra-indicada a saltos-altos que descobri uma parte dela. A pedalar.

Houve uma altura em que deixei de andar de bicicleta. O "unhappy ending": caí. Depois veio um Natal que ancorou uma Nintendo lá em casa e a bicicleta, preterida, acabou refém na arrecadação. Há uns tempos, porém, fiz-me à ciclovia. Tomei-lhe o gosto – é barato e emagrece – e foi numa dessas travessias pela Duque de Ávila que descobri o Velocité Café, uma oficina de bicicletas que é também café e livraria.

Atraquei lá numa tarde. Pedi um prego em bolo de caco, folheei alguma da ciclopédia que lá tinham e voltei no dia seguinte. E no outro. Longe da turbulência para-inglês-ver e do pára-arranca de compromissos, o Velocité foi a melhor descoberta que fiz nos últimos tempos. É uma espécie de Amesterdão que pedalou até Lisboa sem ninguém ter dado por isso. Uma Amesterdão a que só faltam os canais do Amstel a recortar a avenida. É como se, dali, desse para espreitar os vários artistas de rua da praça Dam. Sem tantos pombos a atrapalhar.

A ementa é versátil – das saladas aos pratos quentes – com destaque para as famosas sopas da Tia Bina (assim o pede o Inverno). De refeições mais elaboradas a uma simples torrada de pão alentejano com um chocolate quente, este velo café é de todos e para todos. Nem para os internetaholics há desculpa: tem wireless gratuito. Na parte mais mecânica da coisa, há bicicletas para alugar, vender ou simplesmente ver, e um espaço para estacionar as “meninas” enquanto se aproveita a esplanada. Quem ainda não se converteu ao pedal também é bem-vindo, claro. (Agora é a parte em que o anunciador, em rodapé e letras pequenas, alerta para um provável desenvolvimento de sintomas de ciclo-dependência depois de uma visita).

O Velocité, antes de ser outra coisa qualquer, é o futuro. Vi ali um comboio de gerações a parar a sua bicicleta. Uma tampa declarada à poluição e ao sedentarismo. Preciso mesmo de invocar o resto da lengalenga sobre os amigos do ambiente? A solução é pedalar. Aproveitemos, que as pernas ainda não fazem greve.

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