Quando os rapazes e as raparigas não se encontram nos corredores da escola

Durante os primeiros anos de vida, a escola é o nosso mundo. Aprendemos as letras, os números e, sobretudo, aprendemos a viver com os outros. O PÚBLICO foi conhecer dois colégios onde o mundo dos rapazes e das raparigas não se cruza.

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Quando os rapazes e as raparigas não estudam juntos Vítor Hugo Costa

À entrada do Planalto, colégio exclusivamente masculino, está um aluno do 6.º ano sentado numa secretária, com a cabeça pousada no braço, de lápis na mão e com alguns livros à frente. Quando nos vê, levanta-se da cadeira e, do seu lugar, cumprimenta-nos com um "bom-dia". Não está ali por acaso.

O director António Sarmento chega pouco depois e explica que se trata de uma tarefa que é atribuída diariamente a todos os alunos, com o objectivo de “incutir nos rapazes o sentido de poder e responsabilidade, através de simples tarefas, recados, ou simplesmente serem a cara do colégio”.

Nesta escola de Lisboa estudam só rapazes, do 5.º ao 12.º ano. O ensino diferenciado, em que rapazes e raparigas estão separados, funciona em quatro escolas, duas em Lisboa e duas no Porto, que pertencem à cooperativa Fomento, ligada à Opus Dei; e uma das suas responsáveis, Margarida Garcia dos Santos, foi recentemente eleita para dirigir a European Association Single Sex Education, ou seja, esta é uma experiência que acontece noutros países não só europeus.

Bruno Morais é aluno do 11.º, no Planalto, e até há três anos frequentava uma escola pública. “No início foi um choque”, confessa. “Estava habituado a partilhar a sala de aula com raparigas, o que me deixava mais distraído”, conta. Para o antigo estudante do sistema de ensino misto a experiência no colégio tem-se mostrado mais vantajosa. Bruno diz ter evoluído de um aluno mediano para um bom aluno, com objectivos ambiciosos. “Na minha antiga escola era muito mais cabeça no ar, não me interessava pelas aulas. Hoje quero ser médico”.

A mesma opinião partilha um colega mais velho. De ar descontraído e confiante, mãos nos bolsos e com expressividade e energia no rosto, Tomás de Lobão argumenta: “Nós vivemos numa sociedade em que a pressão dominante é formatarem-nos, [dizerem-nos] que somos todos iguais. Somos diferentes”. No 12.º ano e aluno do colégio desde o 5º ano, Tomás diz sentir que se tira mais partido de um ensino que direcciona as suas estratégias em função do género. “Os rapazes e raparigas têm estados de desenvolvimento e sensibilidades completamente diferentes”, argumenta. Questionado sobre a complementaridade que essa diferença poderá trazer à sua experiência académica e pessoal, Tomás responde saber que no futuro vai estar integrado num mercado misto, mas que nesta fase se sente “mais capaz” a trabalhar em grupos só de rapazes. 

Para o director do Colégio Planalto, o modelo de ensino em Portugal foi feito “por mulheres e para mulheres”. Por outro lado, sublinha o director, são leccionados por um maior número de professoras do que professores e por isso todo o contexto de sala de aula e avaliação reflecte-se no geral sucesso das raparigas e no insucesso dos rapazes.

“A ideia é que perante a diferença de progressão de desenvolvimento de cada um, tem de ser diferente também a forma de chegar até eles. Na questão dos programas não podemos diferir muito. A forma de os pôr em prática, essa sim é muito diferente”, afirma António Sarmento.

Para as aulas dos rapazes, o director acredita que o segredo está no modo como são organizadas. Para cativar a atenção dos rapazes e rentabilizar o seu rendimento, as aulas devem ser preparadas com “quantidades, qualidades, responsabilidades e tempos específicos”. “Precisam de ser muito mais estimulados, de sentirem o desafio, de serem puxados por metas pequeninas”. Como? Através de revisões de matéria numa lógica de rápida pergunta-resposta, às vezes têm mesmo de se levantar da cadeira, ou passar uma bola entre os colegas, “coisas que para os rapazes são absolutamente fulcrais”, considera António Sarmento.

Já no que diz respeito às raparigas, a preocupação deve assentar na relação entre aluno e professor, uma vez que “não necessitam tanto desse ambiente de competição e de estímulo”. A diferença poderá estar no contacto visual com a turma a entrar, promover uma relação entre os colegas, quer seja no corredor ou no momento que antecede o inicio da aula, conversando sobre o dia ou aula anterior.

Casos europeus
Segundo dados do último relatório da European Association Single Sex Education (EASSE), de 2008, no top das 100 melhores escolas do Reino Unido, 81 funcionavam com o modelo de educação diferenciada. Na Nova Zelândia, há mais 75 escolas diferenciadas no sector público do que no sector privado. O mesmo acontece na África do Sul, Coreia do Sul e Japão.

Recentemente nomeada presidente da EASSE, Margarida Garcia dos Santos fala dos objectivos da associação em Portugal. Nas suas palavras o modelo “tem provas dadas e vale a pena conhecer” e por isso importa “divulgar o que se pensa só ter existido no passado e que deixou de existir”. Por outro lado, a organização pretende “fomentar estudos junto da comunidade científica, no sentido de que se conheçam melhor as vantagens deste modelo”.

A presidente da associação explica que este modelo “não tem nada a ver” com as opções que nos anos 1950 sustentavam escolas com ensino diferenciado, sublinhando que não se trata de continuar a fazer sentido mas de “voltar a fazer sentido”. O modelo tem inúmeras diferenças “na gestão do currículo, no espaço da escola e dentro da sala de aula”.

No contexto de sala de aula, destaca a falta de formação dos professores, que “dão aulas para uma massa não tendo em conta essas diferenças, acabando por penalizar ou os rapazes ou as raparigas, uma vez que não estão a aproveitar aquilo que são as suas diferentes formas de aprender e as formas de estar”. 

“Se as pessoas do marketing percebem perfeitamente como é que têm de alcançar o público feminino e como é que têm de atingir o público masculino, então faz todo o sentido que ao nível da aprendizagem um professor, ainda que esteja numa escola mista, saiba como é que tem de atingir os resultados com os rapazes e como é tem de atingir os resultados com as raparigas”, exemplifica.

Apesar da separação entre géneros, a directora assume-se consciente de que “tem de existir equilíbrio” e “promover os necessários antídotos”, para que não haja uma excessiva estereotipização. “Há um cuidado que é mais pertinente, mais pesado nos rapazes do que nas raparigas. Procura-se muito que haja actividades agregadas à arte, à parte do teatro, da cultura, para desanuviar essa componente mais masculina”, partilha. 

Para Margarida Garcia dos Santos, a necessidade não passa por criar mais escolas, mas criar experiências, nas próprias escolas mistas onde “em determinadas matérias, em determinados níveis escolares, se possam separar os rapazes das raparigas, aproveitando os ritmos de aprendizagem e melhorando o rendimento escolar”. 

No mundo das raparigas
O Colégio Mira Rio, também em Lisboa – os colégios pertencem a uma cooperativa de pais, a Fomento, com ligações à Opus Dei que tem igual oferta no Porto, os colégios dos Cedros e o Horizonte, para eles e para elas, respectivamente –, está dividido por duas vivendas, com um ambiente mais caseiro e familiar e com menos espaços para actividades físicas.

Aqui é mais difícil receber um "olá". Em vez disso, sorrisos tímidos e curiosos, distantes da descontracção a que nos habituámos com os rapazes do Planalto. A mesma reacção se repete no momento de falarem com o PÚBLICO. Ao contrário dos rapazes, que preferiram falar a sós, longe da presença dos colegas ou do director, as alunas pedem para falar em conjunto e permanecem na sala, a escutarem as respostas das colegas. Depois de, a algum custo, decidirem qual fala primeiro, todas elas são transversais numa resposta: sentem-se mais à vontade para colocar questões sem a presença de rapazes.

Ultrapassada a vergonha inicial, Maria Almeida, uma das estudantes do 12.º ano, fala das aulas de Inglês que frequenta, fora do colégio Mira Rio. À partilha da sala de aula com rapazes, antes prefere ter aulas só com raparigas. “O facto de sermos só raparigas e só termos professoras permite-nos ter uma forma de aprendizagem semelhante entre todas e que as próprias professoras percebam melhor como funcionamos”, defende. Maria diz-se ainda mais confiante, e afirma que a opção fornece mais ferramentas para conseguirem “ultrapassar as dificuldades” e tornarem-se “mais independentes”. 

“Hoje em dia a facilidade de relacionamento e interacção é imensa, não é como na altura dos nossos trisavós e bisavós, e por isso há que aproveitar o ensino diferenciado para sedimentar valores de forma muito sólida”, defende a directora do Colégio Mira Rio, Ana Teixeira Dias.

Questionados sobre o futuro deste modelo, se poderá crescer, a presidente da associação e os dois directores dos colégios assumem algumas reservas, sobretudo devido à instabilidade económica que muitas famílias enfrentam. Estas escolas são privadas e, por isso, pagas.  “Não me parece que seja por falta de provas que é claramente muito bom e um modelo a seguir. Mas adivinho que não seja um futuro muito imediato”, resume a directora do Mira Rio.
 
 

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