Um “fim com horror”

Num relato de cortar a respiração, Ian Kershaw tenta explicar um absurdo da História: o que levou a Alemanha a resignar-se ao sofrimento inconsequente do final da Segunda Guerra Mundial?

O que se passou na Alemanha entre a tentativa de assassinato de Hitler, a 20 de Julho de 1944, e a capitulação do Terceiro Reich, em 8 de Maio de 1945, é um enigma histórico que desafia a compreensão. Depois do desembarque dos Aliados na Normandia e da devastadora ofensiva de Verão do Exército Vermelho, poucos poderiam acreditar numa vitória da Alemanha na Segunda Guerra Mundial. Ainda assim, a Wehrmacht combateu até à queda da capital, a população resistiu a sofrimentos indizíveis com resignação, o partido nazi manteve o seu controlo absoluto sobre a sociedade, os correios continuaram a funcionar, os funcionários públicos recebiam o seu salário ao fim do mês e a 23 de Abril de 1945, duas semanas antes de os soviéticos hastearem a sua bandeira no Reichstag, em Munique o Bayern recebeu e bateu o seu rival Munique 1860. O que salvou o regime de um levantamento popular ou de um golpe militar nesses meses em que só se podia esperar a destruição mais profunda da infraestrutura do país? Que mistérios escondem a organização nazi e uma sociedade e um exército sujeitos a quase duas décadas de nazificação? Como foi possível esse absurdo num dos países culturalmente mais avançados da Europa?

Nas últimas décadas, foram vários os historiadores que se dedicaram a tentar reconstruir o último ano da guerra, seja em estudos de história militar (a obra de Jonh Ericsson dos anos 70, The Road to Berlin, é, apesar de razoavelmente datada, um dos melhores exemplos dessa preocupação), seja em narrativas que procuram conjugar o avanço dos exércitos com as suas consequências na população, seja em monografias de episódios esclarecedores do absurdo em que a guerra se transformara (veja-se, por todos, o magnífico Dresden, de Frederick Taylor). No entanto, não tinha sido ainda empreendido “um estudo exaustivo das mentalidades alemãs dos últimos meses da guerra”, ou, por outras palavras, o que levou a população a preferir “um fim com horror a um horror sem fim”. Ian Kershaw, o decano da academia britânica em estudos sobre o Terceiro Reich, dedicou-se a essa tarefa e publicou este a todos os títulos extraordinário Até ao Fim, Destruição e Derrota da Alemanha de Hitler, 1944-1945.

Kershaw poderia ter começado em Estalinegrado, em Fevereiro de 1943, como fez a generalidade dos autores que se dedicaram ao princípio do fim do Terceiro Reich. Ou no desembarque aliado na Normandia, a 6 de Junho de 1944. A opção pela tentativa de assassinato de Hitler por Claus von Stauffenberg justifica-se, porém, pelo facto de esse atentado ter endurecido um regime que já nessa altura tinha nas suas mãos uma Alemanha “completamente militarizada”, “atomizada, subjugada e governada com base no medo”. Na sequência do golpe, o quadrunvirato Martin Bormann, Joseph Goebbels, Heinrich Himmler e Albert Speer - “contando-se três deles entre os fanáticos mais brutais e radicais, sendo o quarto um génio de organização, ambicioso e sedento de poder” - reforça o seu poder, os altos comandos militares renovam os seus laços de fidelidade ao regime (a saudação Heil Hitler torna-se então obrigatória) e a propaganda volta a aproximar os alemães do seu Führer. Em vez de promover a dissidência e a contestação, o atentado une os diferentes corpos sociais, políticos e militares da Alemanha. E é esta coesão que, segundo Kershaw, ajuda a explicar o extraordinário e simultaneamente absurdo poder de resistência da Alemanha nos meses que se sucederam até ao final da guerra. Em Agosto, os Aliados reconquistam Paris e a violenta campanha do Exército Vermelho nesse Verão provoca à Alemanha a perda de um milhão e meio de homens, entre mortos, feridos e desaparecidos - é “a pior catástrofe da história militar alemã”. Os bombardeamentos aéreos sucessivos arrasam a infraestrutura logística e industrial da Alemanha. Com os soviéticos a aproximarem-se da Prússia Oriental, Himmler prometia em Setembro de 1944: “Se o inimigo entrar algures, encontrará um povo tão fanático, a lutar como louco até ao fim, que com certeza não avançará”.

A proclamação seria desmentida no mês seguinte, com a queda de Aix-la-Chapelle nas mãos dos Aliados. Dias mais tarde, o Exército Vermelho ocupa por pouco tempo Nemmersdorf, na Prússia Oriental. O rasto da sua curta passagem serviria de aviso para o que seriam a conquista e a ocupação soviética, facto que a máquina de propaganda de Goebbels aproveitará até à exaustão. Entre os soldados, e em boa parte da população, havia o conhecimento das atrocidades que os alemães haviam perpetrado aos civis nas campanhas do Leste de 1941 e de 1942. O medo da vingança tinha uma justificação real. A propaganda soviética legitimava todos os receios: “Vingai-vos sem misericórdia dos infanticidas e carrascos fascistas, pagai-lhes o sangue das mães soviéticas e dos seus filhos”; “Matai. Não há nada de que os alemães não sejam culpados”.

O pavor da retaliação é para Kershaw uma das mais poderosas armas de mobilização dos alemães na frente Leste. Lutar era mais do que defender a pátria ou o regime: era defender a família. Para muitos, “uma vitória dos soviéticos significaria a extinção da vida do povo alemão”. O medo “era a principal motivação para resistir e continuar a lutar no Leste (...), forjando uma espécie de integração enquanto tudo o resto se desmoronava”, escreve Kershaw. Mesmo com o inimigo dentro de portas, Kershaw não enuncia um cenário geral de derrotismo. A confiança na liderança de Hitler e a secreta esperança de que uma nova arma iria alterar o destino da guerra mantinham-se. Em Dezembro, porém, quando a última acção ofensiva da Alemanha fracassou nas Ardenas, ficou claro para o alto comando e para os cidadãos que restava ao regime defender o país a todo o custo. Uma missão impossível, que a ofensiva soviética de Janeiro trataria de confirmar num ápice.

Apesar das dificuldades, “uma resistência surpreendente e uma capacidade de improvisação ainda mais notável permitiam ao Estado, ao partido e à máquina burocrática militar continuarem a funcionar, se não normalmente, pelo menos ainda com alguma eficiência”. O terror e a repressão sobre a população intensificaram-se. A 15 de Fevereiro, uma directiva de Bormann ordenava aos Gauleiter (responsáveis regionais do partido): “Reprimam implacavelmente todos os sinais de desintegração, cobardia e derrotismo com as penas de morte dos tribunais marciais sumários. Quem não estiver disposto a lutar pelo seu povo e o apunhale pelas costas na sua hora mais grave não merece viver e deve ser executado”. Os desertores eram enforcados nas árvores com cartazes a dizer: “Sou um desertor e recusei-me a proteger mulheres e crianças alemãs”. Kershaw calcula que 20 mil soldados tenham sido sumariamente executados nos últimos meses da guerra (no conflito de 1914/18, a Alemanha executou apenas 48 desertores).

Em Março de 1945 só as hostes mais fanáticas do nazismo acreditavam numa vitória. As notícias da frente horrorizavam o cidadão comum. Em Berlim, os bombardeamentos aéreos intensificavam-se. As vagas de refugiados de Leste multiplicavam-se, por vezes com episódios horríveis - Kershaw dá conta da comoção da população quando se soube da chegada de um camião de caixa aberta cheio de crianças, muitas mortas após terem ficado expostas 96 horas ao frio extremo. Mas, e é aqui que se encontra o cerne do problema (e da perplexidade) do historiador, mesmo com os inimigos da Alemanha na margem leste do Óder e na margem ocidental do Reno não houve qualquer mudança no topo da hierarquia nazi nem nos próprios cidadãos. “É verdadeiramente extraordinário que, apesar disso, persistisse a determinação para continuar a combater, quando pouco ou nada se poderia obter com a continuação da destruição e das pesadas baixas”, escreve Kershaw. Esmagada pela derrota iminente, pelo medo da vingança dos soviéticos (muito mais intenso do que o receio da retaliação dos Aliados), pelo pavor da máquina repressiva do partido e do aparelho do Estado e pela desconfiança em relação aos milhões de imigrantes forçados, a maioria dos alemães rendia-se, de acordo com os relatórios da propaganda, a “uma profunda letargia” ou ao “veneno insidioso” da resignação.

O que continuava a manter a coesão desta máquina de poder era Hitler. Numa reunião em 24 de Fevereiro, os Gauleiter “ficaram chocados com o seu aspecto - o aspecto de um homem velho, doente, fisicamente depauperado, cujo braço esquerdo tremia sem parar”. Mas ninguém tinha ainda força, ou coragem, para o enfrentar. Pelo contrário, o carisma de Hitler e a sua aura de Führer continuavam a ser eficazes. As suas mensagens apocalípticas não eram questionadas. “Podemos cair. Mas levaremos o mundo connosco”, disse por essa altura. Os alemães que sobreviveram até essa data não mereciam protecção - os verdadeiros alemães tinham perecido em combate, argumentava. As suas ordens finais previam a destruição de toda a infraestrutura económica conforme a Wehrmacht recuasse - uma insanidade que Albert Speer não cumpriu. “É inquestionável que a liderança militar dominadora de Hitler, intrusiva e cada vez mais errática, agravou notoriamente a extensão do desastre e a dimensão das perdas humanas”, escreve Kershaw.

Sem o vigor descritivo de Antony Beevor (o autor de A Queda de Berlim) ou de Frederik Taylor, o grande mérito de Até ao Fim está na tentativa de procurar um nexo de causalidade para a aberração histórica que provocou a decisão consciente de uma elite ou a resignação letárgica de todo um povo à devastação do seu país. A descrição dos horrores que viveu a população, com os bombardeamentos, as violações (Beevor calcula que dois milhões de mulheres terão sido vítimas destes crimes às mãos dos soviéticos; Kershaw refere um quinto das alemãs) e a repressão da Gestapo ou das SS, e da preservação da máquina de extermínio de judeus até ao último dia serve aqui apenas como um pano de fundo para uma pergunta: como foi possível?

Sem o referir explicitamente, Kershaw autoriza-nos a pensar que este destino resulta tanto da capacidade que o regime demonstrou para impor a anulação da vontade individual e o desprezo por valores civilizacionais básicos, como de uma certa aquiescência e de um código de valores marcado pela disciplina. Numa entrevista à revista alemã Der Spiegel, o historiador disse não conseguir imaginar que os anos finais da guerra na Alemanha fossem repetíveis na Itália ou na Grécia: “Houve algo tipicamente alemão nesse processo.” À margem de qualquer tentativa de produção de uma tese sobre a natureza dos alemães enquanto povo, o que o livro de Kershaw nos instiga é o reconhecimento de que a despersonalização forçada pelo totalitarismo pode tolher na humanidade o seu instinto de luta pela sobrevivência. Condenada pela natureza do regime nazi, a Alemanha teria sido poupada à destruição e ao sofrimento humano dos últimos meses da guerra se o golpe de Stauffenberg tivesse sido um sucesso. O destino, porém, permaneceria incerto. Se Hitler tivesse sido assassinado, as sementes do nazismo, rapidamente extirpadas no pós-guerra, não continuariam a atormentar a Alemanha e a Europa?

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