Dos oceanos ao ser humano, “o tratado para o plástico é um tratado global para a saúde”

O tratado mundial para o plástico, a maior fonte de poluição marinha e uma ameaça à saúde humana. terá que ficar pronto até 2024. Num evento paralelo da Conferência dos Oceanos discutiu-se alguns dos desafios que este acordo terá de abordar.

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Uma criança nada no rio Pasig, em Manila, nas Filipinas FRANCIS R. MALASIG/EPA

Ben Jack sabe que o seu sangue contém plástico. O britânico, director do programa da Common Seas, uma empresa não lucrativa sediada em Totnes, na Inglaterra, que trabalha para a redução do plástico no mundo, integrou um estudo que analisou o sangue de várias pessoas à procura de microplástico.

“Trabalho em ciência marinha e da conservação há 15 anos e pensava que já tinha perdido toda a capacidade de ficar chocado com o que vejo, mas descobrir que tenho fragmentos de plástico lado a lado com os meus glóbulos vermelhos e glóbulos brancos foi verdadeiramente chocante”, disse ao PÚBLICO, depois de falar nesta quinta-feira numa sessão paralela da Conferência dos Oceanos, em Lisboa, sobre o que está em causa no Tratado das Nações Unidas para a poluição do plástico tanto para os oceanos, como para a saúde humana.

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O homem caminha numa praia em Bombaim Hemanshi Kamani/Reuters

O estudo científico em que Ben Jack participou foi notícia por todo o lado e é um poderoso alerta para a poluição causada pelo plástico, que já atingiu os ecossistemas mais afastados do mundo e é um dos grandes problemas dos oceanos. Hoje, o plástico perfaz 85% do lixo marinho. Todos os anos, 11 milhões de toneladas de plástico acabam nos oceanos, de acordo com as Nações Unidas. Se nada for feito, aquele número duplicará em 2030 e triplicará em 2040. A soma do impacto do plástico no turismo, na pesca, na aquacultura mais o custo da limpeza destes detritos alcançou um custo mundial de entre 6 e 18 mil milhões de euros apenas em 2018.

Mas a boa nova veio de Nairobi, no Quénia, em Março último, quando os ministros do Ambiente, chefes de Estado, grupos empresariais e outros representantes de 175 países, presentes na quinta sessão da Assembleia da Nações Unidas para o Meio Ambiente, deram luz verde à elaboração do primeiro tratado internacional juridicamente vinculativo para regular o ciclo de vida dos plásticos. Até 2024, o tratado terá que ficar pronto. Mas levanta muitas questões, algumas delas problematizadas durante a sessão que decorreu ao início da tarde, nas instalações da Marina do Parque das Nações.

“Na sua essência, os plásticos são carbono e compostos químicos. Estes compostos químicos estão a entrar no ambiente e nos nossos corpos desde o momento em que o petróleo usado para os fabricar é extraído do solo”, explicou Therese Karlsson, conselheira científica e técnica da Rede Internacional para a Eliminação dos Poluentes. Esta rede é uma das entidades que está presente na discussão do novo tratado.

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Um homem recolhe material para reciclar numa praia em Bombaim, na Índia Hemanshi Kamani/Reuters

Taxar o plástico

Existem mais de 10.000 substâncias conhecidas nos plásticos. “Destas, sabemos que cerca de um quarto são substâncias que levantam preocupações. São tóxicas, carcinogénicas, perturbam o nosso sistema reprodutor, a vida marinha. Em relação aos outros três quartos, não quer dizer que elas sejam seguras, simplesmente não há informação suficiente para o dizer”, disse a especialista sueca, lançando-se para o argumento principal da sua apresentação: “É por isso que o tratado para o plástico é, na realidade, um tratado global para a saúde.”

O problema, segundo a especialista, é que os consumidores não têm como conhecer as substâncias que integram os plásticos que utilizam. “Estes compostos químicos estão a ser usados com muito pouco controlo e quase sem transparência”, disse Therese Karlsson ao PÚBLICO. “Os produtores não revelam o que utilizam na produção do plástico e não há leis que obriguem à transparência. Isso tem de ser abordado pelo tratado”, acrescentou a perita. Um dos objectivos do futuro documento será lidar com os efeitos nocivos do plástico na saúde humana e no ambiental. Para isso, será necessário abordar as questões dos compostos químicos e da transparência da indústria, reforçou a perita. No entanto, será obrigatório um mecanismo financeiro para aplicar as mudanças necessárias. “A implementação não vai funcionar sem esse mecanismo financeiro”, sublinhou.

A sessão foi seguida por uma série de perguntas vindas da plateia que trouxeram à tona a complexidade do tema. Como é que se pode aumentar a transparência do ciclo de vida dos plásticos, se parte dos compostos químicos usados estão protegidos enquanto propriedade intelectual? Como é que se pode evitar a entrada no tratado de medidas de greenwashing, como o uso da reciclagem enquanto solução para os plásticos? Ao mesmo tempo que os governos estão a dar um aval ao tratado, estão a financiar os produtores de combustíveis fósseis, cada vez mais inclinados para a produção de plástico. Como evitar isso?

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Uma criança caminha na praia Kampung Jawa, na Indonésia HOTLI SIMANJUNTAK/EPA

“Temos de perceber que o negócio do plástico é claramente um plano B para a indústria petroquímica com a aprovação do Acordo de Paris [para as alterações climáticas]”, disse Fabienne McLellan, uma das palestrantes que respondeu à última pergunta e que é a directora de gestão da OceanCare, uma organização dedicada à protecção da vida marinha. “Por isso, temos de que ser espertos e compreender estes mecanismos. Neste momento, os custos estão a ser externalizados, estamos a pagar o preço da poluição que eles fazem e o plástico é demasiado barato. Temos que usar mecanismos para contrabalançar isso. E que tal um imposto para o plástico?”, sugeriu.

Até 2024, a discussão não vai parar.

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