Ser alguém no futuro, e o presente?

De forma que considero inquietante e provavelmente fruto dos estilos de vida e das dificuldades genéricas que enfrentamos, tem vindo a instalar-se de mansinho em muitos pais, frequentemente acompanhados pelas instituições educativas, uma atitude e um discurso de exigência e de pressão para a excelência no desempenho dos miúdos.

Esta pressão começa cedo e desde logo dirigida aos resultados escolares. No entanto, é extensível a todas as áreas em que as crianças se envolvem, esperando-se, exigindo-se, que sejam excelentes a tudo. Este entendimento assenta, implícita ou explicitamente, na ideia de que só assim se será “alguém no futuro”.

Uma primeira consequência, para além do tempo infindo que os mais novos passam na escola é a construção de uma orientação educativa obsessivamente centrada em resultados, exames, aliás acompanhada pelo discurso do próprio Ministério da Educação.

Por outro lado, emerge uma oferta de experiências educativas com uma diversidade espantosa que tornará as crianças fantásticas, excelentes, em “montanhas” de coisas, todas contributivas para a seu sucesso no futuro. Instalou-se um pouco a convicção de que é fundamental para o desenvolvimento e bem-estar futuro das crianças a sua participação em inúmeras actividades, todas imprescindíveis à excelência e que só os excelentes serão alguém.

Encontramos oficinas, ateliers, playcenters, workshops, espaços lúdicos, etc., destinados à música, do jazz à clássica, à dança ou à literatura, contos e histórias, às actividades expressivas, plásticas ou artísticas e mesmo a filosofia para crianças, destinada, eventualmente, aos mais reflexivos. Temos as actividades desportivas, várias modalidades, “indoor” ou de ar livre em diferentes versões e natureza, quintas pedagógicas, contacto com animais e espaços de aventura, campos de férias, etc.

Ainda não há muito tempo, a imprensa noticiava várias experiências de ensino do mandarim. Existe uma autarquia, S. João da Madeira, que anunciou para Janeiro de 2013 o ensino do mandarim em todas escolas do 1º ciclo, pretendendo estender o seu ensino até ao 12º ano. Tal como alguns pais afirmaram tratar-se de uma “língua que terá grande impacto a nível mundial", a autarquia justifica a decisão como uma forma de antecipar futuros contactos comerciais com "o maior mercado da humanidade". Saber mandarim pode, assim, também ser algo de muito importante para se ser alguém no futuro.

Sei bem que em todo este universo existem iniciativas de excelente qualidade, e que em muitas destas actividades estará presente uma genuína preocupação dos seus responsáveis pela qualidade e adequação do trabalho que realizam com os miúdos. No entanto, creio que devemos adoptar uma atitude de alguma cautela.

Entende-se, muitos pais, mas não só, o afirmam, que a realização de todas estas actividades é imprescindível aos miúdos pois promovem níveis fantásticos de desenvolvimento intelectual e da linguagem, desenvolvimento motor, maturidade emocional, criatividade, interacção social, autonomia e certamente de mais um vasto conjunto de competências e capacidades que agora não recordo.

A vida de muitas crianças transforma-se assim num espécie de agenda, passando o dia, incluindo férias e fins-de-semana, a saltar de actividade fantástica em actividade fantástica, numa agitação sem fim.

Acontece que algumas crianças, por questões de maturidade ou funcionamento pessoal, suportam de forma menos positiva esta pressão o que poderá gerar o risco de disfuncionamento, rejeição escolar e social e, finalmente, insucesso, ou seja, a pressão para ser alguém no futuro, transforma o seu presente num pesadelo, pelo que, naturalmente, o seu futuro também estará ameaçado.

A melhor forma de preparar as crianças para o futuro é cuidar bem deles no presente, desejavelmente sem faltas, mas também sem excessos. O futuro começa em cada dia do presente. Dito de outra maneira, ser alguém no futuro é ser alguém no presente.

José Morgado, professor no ispa Instituto Superior de Psicologia Aplicada (ISPA)

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