“Se o universo não está acabado, a religião também não”

John Haught tem participado em vários debates com os chamados novos ateus, movimento que “ataca” a religião liderado por Richard Dawkins. Entrevista da série Conversa de fim de ano sobre religião.

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Escreveu quase 20 livros, a maioria sobre ciência e religião, tema que se dedica há anos. O teólogo americano John Haught, Senior Fellow do Woodstock Theological Center da Georgetown University, está prestes a publicar Science and Faith: A New Introduction.

Haught tem participado em debates com os chamados novos ateus, movimento que “ataca” a religião liderado por Richard Dawkins e chegou a receber o “Friend of Darwin Award” do National Center for Science Education. No seu futuro livro Science and Faith reflecte, de novo, sobre a relação entre ciência e teologia. Em Portugal, está traduzido pela Gradiva o seu livro Cristianismo e evolucionismo em 101 perguntas e respostas.

Qual é o ponto de vista do seu novo livro?
A primeira questão é sobre a relação entre a fé e a ciência. Os novos ateus argumentaram que a fé, de qualquer tipo, é o contrário da ciência. Defendo que não se pode fazer ciência sem um certo tipo de fé – tem que se acreditar que o universo é inteligível, tem que se acreditar que vale a pena procurar a verdade e tem que se acreditar que a nossa mente tem integridade auto-suficiente para distinguir o que é verdade e o que não é.  Isto são tudo crenças nas quais a maioria dos cientistas não reflecte.

Outras perguntas que faço são: será que a ciência exclui um Deus pessoal – porque para muitos como Einstein é a ideia de uma resposta pessoal de Deus, de que Deus responde a orações, que a ciência contradiz. Há várias posições: a ciência e a religião são opostas e não há reconciliação possível; a ciência nunca pode dialogar com a religião porque ambas falam de coisas completamente diferentes e portanto não há conflito; e há posições como a minha que partem do facto de que as descobertas científicas deram-nos a imagem clara de um universo que ainda está em processo de formação. No livro defendo que temos que repensar a teologia, incluindo a questão do Deus pessoal, pelo facto de a biologia, a cosmologia e a teologia nos terem mostrado que vivemos num universo incompleto e que ainda temos pela frente um futuro – não podemos olhar para trás, nem para cima mas para a frente quando pensamos na nossa relação com Deus.

No seu livro Science and Religion: From Conflict to Conversation (1995) defende que a ciência e a religião têm em comum o facto de procurarem a verdade, e que a ciência não é tão pura e objectiva, nem a teologia tão impura e subjectiva quanto se pensava. O conhecimento objectivo e a verdade existem?
Entendo a verdade não como algo que possuímos mas como algo que está agarrado a todos nós, em diferentes dimensões do nosso ser, e à qual respondemos de maneiras diferentes. É a procura da verdade que está subjacente à ciência e à religião saudável. Mas a verdade vem em diferentes camadas.

Defendo que temos de desenvolver o sentido daquilo que chamo explicação em camadas e cada nível de entendimento e de procura de verdade deixa de fora outras coisas. Por exemplo, a ciência procura perceber a natureza e deixa de fora questões à volta de valores, do significado da vida, de Deus ou da finalidade e olha para a natureza apenas do ponto de vista das causas naturais. Isso está correcto, mas não significa que aquelas questões sejam irrelevantes, por isso vejo complementaridade entre a ciência e a religião.

O problema é quando as pessoas partem do princípio de que há apenas uma explicação e que a religião ocupou esse lugar durante séculos por isso a ciência explica-a hoje melhor e a teologia é excluída. Isso é outra crença, a de que a ciência é a única forma de explicação -e não se pode fazer uma experiência científica que o prove, por isso há uma dimensão pessoal e subjectiva da ciência.

Isso tem a ver com aquilo que defende, que a religião não tem que elaborar sobre as descobertas científicas mas ambas partilham raízes epistemológicas?
Em certo sentido sim. A religião ou a teologia não podem dar informação científica. Assumir isso é criar todo o tipo de problemas e é por isso que em 1893 um papa conservador escreveu aos católicos para que não procurassem informação científica.

As escrituras são sobre a transformação, não nos dão informação - foi exactamente o que disse Galileu quando lhe perguntaram se a cosmologia não contrariava as escrituras. A informação que podemos procurar não está na Bíblia. Isso é entrar no debate sobre se a teoria da evolução contraria as escrituras. Se mantivermos claras estas distinções não há problema.

O meu livro é feito de perguntas por capítulo: a fé é oposta à ciência? A ciência exclui um Deus pessoal? A fé é compatível com a teoria da evolução? Os milagres acontecem? O universo foi criado? A química sozinha pode explicar a vida? A ciência pode explicar a inteligência? Podemos ser boas pessoas sem Deus? Somos especiais? Há vida depois da morte? Há uma finalidade no universo? E se os extraterrestres existirem?

Qualquer uma delas é mais interessante que as minhas perguntas, quer escolher três e responder?
Escolho: a fé é compatível com a teoria da evolução? É o assunto mais debatido nos Estados Unidos. A maioria das pessoas não olharam de perto para a evolução, que tem várias questões interessantes para a fé. A receita que Darwin dá para a mudança da evolução consiste em três ingredientes e todos parecem desafiar as crenças teológicas.

O primeiro é que tiveram que existir vários acidentes para que a evolução acontecesse – acidentes na origem da vida, ou na própria vida, mutações genéticas. Ou seja, é o acaso que lidera o processo.

O segundo é que a lei da selecção natural -injustamente e aparentemente de forma cruel - elimina os organismos que não são adaptáveis e não podem sobreviver.

Em terceiro, o que escandaliza muitas pessoas religiosas quando não estão familiarizadas com a teoria da evolução é que o universo tem 13.7 mil milhões de anos e muitas pessoas perguntam: se Deus é amor e é providencial, se se preocupa com o universo, porque é que Deus demorou tanto tempo a criar a vida há 3.8 mil milhões de anos?

Muitos dos opositores da ligação ciência e religião, muitos criacionistas, defendem que devemos levar a Bíblia mais á letra e até negam que a vida tenha 4 mil milhões de anos. A questão é se esta história do universo que descobrimos recentemente tem um significado – e isso é a mudança que a minha teologia tenta trazer ao debate. A maioria dos opositores da evolução insiste que a quantidade incrível de desígnio/planeamento da vida prova que tem que existir uma inteligência responsável por isso.

O que levanta uma série de questões: se Deus é este arquitecto ou engenheiro porque é que a vida tem tantas falhas, imperfeições? É relativamente consensual entre os biólogos que nenhuma adaptação é perfeita, e posso já referir o facto de o meu esqueleto ser mais vulnerável do que o das pessoas mais baixas. Portanto o que os ateus defendem – e as pessoas que defendem um desígnio inteligente – é que se Deus existisse teria que ser um designer perfeito.

O que digo é que se tudo fosse desenhado de forma perfeita desde o dia um da criação então não existiria futuro, o universo teria acabado, estaria morto, se o universo fosse perfeito a vida, a liberdade não eram possíveis.

Darwin dá ao universo uma história. Para existir uma história precisamos de imprevisibilidade, de alguma consistência e de muito, muito tempo. Acontece que aquilo que de início parece ser o oposto de um Deus arquitecto é essencial para a vida ter uma narrativa coerente. A minha metáfora é que a vida é um drama e o universo é um drama de transformação – a transformação que a religião procura no caso dos seres humanos tem as suas raízes no universo.

Associo a existência humana e a vida de forma muito mais forte ao drama cósmico do que a maioria das pessoas que falam de evolução. A questão não é se o design aponta para a divindade, mas se o drama da natureza é o portador de um significado.

Tudo que está em causa na discussão entre ciência e fé vai dar à questão sobre se alguma coisa com significado se está a criar a si própria no universo. Defendo que as probabilidades são muito altas e nenhum de nós está em posição de dizer, como os novos ateus, que o universo não tem sentido nem significado: o drama ainda está a desenrolar-se.

Quando vamos ao teatro e chegamos ao acto 2 ainda não podemos dizer sobre o que é a peça – o universo em que vivemos pode estar ainda no seu princípio

Quando diz que se o universo tivesse sido perfeito desde o primeiro momento estaria agora morto significa que acredita que a perfeição significa o fim?
Sim. E o facto de a adaptação e o design não serem perfeitos é necessário para que exista futuro – portanto o facto de nenhum ser perfeito exclui a ideia de que Deus é apenas um engenheiro, mas ainda está aberto à ideia de que Deus ama o mundo e lhe dá a permissão de se tornar naquilo que é, dá ao universo uma certa liberdade.

Esse tipo de Deus é muito mais amor do que aquele que coloca uma impressão final no universo no princípio. A divina providência numa era da ciência implica um Deus que dá a oportunidade ao universo de se tornar ele próprio, vivo, que responde e produz seres.

Há um risco de que, uma vez dada liberdade, podermos decidir contra o futuro, voltar atrás e reduzir tudo ao passado. A atitude mais realista que podemos ter num universo que ainda está a ser criado é esperança, não desespero – esperança é um radar que ilumina o futuro para novas possibilidades e para mim isso conjuga-se muito melhor com o tipo de universo que a ciência desvendou.

Como é que a vida depois da morte se conjuga com essa narrativa que descreve?
A questão da vida depois da morte coincide com a questão sobre se a esperança é realista – é a forma como a Bíblia coloca a questão. A  principal mensagem da Bíblia é para mantermos a esperança.

A ideia de que no final tudo volta á estaca zero, que a consciência está destinada a ser esvaziada torna-se incompatível com a esperança. A questão da vida depois da morte  está ligada à questão sobre se a vida vale a pena ser vivida. Abordo isso no livro: sim, vale a pena, mesmo se no final a consciência ficar reduzida a nada, o universo morra por exaustão de energia. Isso não deve servir para recusar a ideia de vivermos bem a nossa vida.

É como se houvesse alguma coisa que perdura que está a ser produzida pela história, que está a ser gravada algures. É o que entendo por Deus: Deus é o último repositório de tudo o que acontece no universo.

Agora que percebemos o quão intrincada a nossa vida está com a história da evolução, e como a nossa existência foi criada neste processo de evolução, não podemos separar a questão do meu próprio destino para além da morte da questão sobre o que vai acontecer a todo o universo – o universo e eu somos inseparáveis.

Isto é uma das grandes contribuições da ciência para a religião, a questão sobre se há vida depois da morte levanta a questão sobre se o universo tem futuro, mesmo que os astrofísicos prevejam que vai haver um big bang no final. Não tenho resposta científica para isso: a minha resposta é esperança.

Repare-se no que aconteceu até agora na história cósmica e como a promessa do princípio está a tornar-se viva e a acordar e uma das coisas mais importantes da história do universo é que acordou e isso dá-me motivos para pensar que o universo tem sentido porque produziu consciência, liberdade, organismos com a capacidade para fazer o bem. 

Referiu que aquilo que o faz acreditar que há um propósito é a esperança – imagina a esperança fora da religião?
Não penso que a esperança esteja confinada à religião. Cada um de nós nasceu com a capacidade para confiar, que se sobrepõe com a palavra esperança. Confiar é uma característica de adaptação necessária.

Há pessoas que criam uma imagem nada saudável de Deus e por isso para viverem vidas com esperança tornam-se ateus. Concordo com o ateísmo de Dawkins, mas não com a sua teologia: a imagem dele de Deus é igual à dos criacionistas e fundamentalistas. Ele é um fundamentalista de coração e eu também não acredito no Deus dele. A questão da esperança levanta precisamente essa pergunta: se pode existir fora da religião.

Acredito que, se se tem uma esperança racional consistente, essa esperança tem que ter uma base e Deus é a base – e é a principal mensagem da Bíblia.

Se o universo não está acabado isso significa que a religião também não está acabada. Não acabado significa imperfeito e as religiões também são imperfeitas. Quando leio a Bíblia vejo seres humanos à procura de esperança – essa é mensagem do cristianismo, judaísmo e islamismo. Se não houver razões para ter esperança, então o universo não faz sentido. As religiões são a prova não de que conseguimos agarrar a verdade mas de que estamos a ser agarrados pela verdade.

Quem é Deus?  
Como cristão encontro a resposta em Cristo. O significado da cristandade é que nunca possa pensar em Deus sem pensar neste homem, Jesus. Isso é o que faz a cristandade diferente. Os cristãos dizem: se querem saber como é Deus olhem para este homem porque como diz o Novo Testamento pense-se em Cristo como contendo a revelação do que Deus é – leiam-se os evangelhos e veja-se como é que este homem respondeu ao amor incondicional, aos pecadores e a outros.

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