Kim Novak. O filme total

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Explicou a Hitchcock que não estava confortável com o fato cinzento e os sapatos pretos de Vertigo - sendo loura, algo "de etéreo", os sapatos fixavam-na ao chão. Hitch ouviu-a e mandou que calçasse os sapatos pretos. Ela percebeu: era o que iria receber do realizador como indicação sobre a personagem desse filme que regressa às salas em cópia digital. É bom ouvir que a voz continua a abrir possibilidades de fantasia e de dor.

Depois de Marilyn Pauline Novak, nascida em 1933, ter acabado os estudos no Art Institute de Chicago, mas antes de guerrear com Harry Cohn, mogul da Columbia Pictures, por causa do nome cinematográfico a adoptar, andou pelos EUA como porta-voz de uma marca de frigorífcos. Miss Deepfreeze começou depois a ronronar a sua sexualidade em Pushover (encontro com Richard Quine, 1954) e Picnic (Joshua Logan, 1955) e já se mostrava aí um desconforto, como se a pele se intimidasse pelo toque da câmara. O seu papel máximo como fantasma, fantasia, e também o momento paroxístico de ferida e sacrifício pela submissão ao olhar voyeur, foi, claro, Vertigo - a Mulher que Viveu Duas Vezes, que agora regressa em cópia digital às salas, triunfante com o carimbo de "melhor filme de todos os tempos" dado por votação da revista britânica Sight & Sound. Kim Novak retirou-se nos anos 60, redescobriu uma paixão inicial, a pintura, rodeou-se no seu rancho de cavalos e lamas. Mas é bom ouvir que a sua voz continua a abraçar possibilidades de fantasia e de dor. Que podemos continuar a fantasiar com a dor.

Numa entrevista disse que "o passado devia ficar enterrado"...

... eu disse isso? Não me consigo lembrar, não me consigo lembrar de tudo...

... sim, a propósito de um incêndio que consumiu a sua casa [2000] e em que arderam as memórias que estava a escrever: terá visto isso como um sinal de que "o passado devia ficar enterrado".

Ah, sim, disse-o nesse contexto. É que acredito em desenterrar o passado se for para olhar para o futuro. Acredito que se deva olhar para "o filme total" ["the whole picture"]

Aqui estou eu, então, a incomodar o seu passado. É uma sensação agridoce?

Agridoce, claro que é. Mas gosto disso. De novo: "o filme total". Não gosto quando as coisas são exclusivamente doces ou exclusivamente amargas. Tal como um filme: não deve ser apenas alegre ou apenas triste.

Vendo bem, a sua presença nos filmes é assim, tocada, pela sombra da tristeza. Ia perguntar se é uma característica pessoal...

Sim, é, sou uma pessoa complexa. E é isso que me interessa, também, na minha pintura, é isso que quero que vejam. É uma árvore, aquilo que pintei, ou é uma pessoa? Não é realmente uma pessoa, se calhar é uma árvore. Isso é que é a beleza: ver sempre muita coisa.

Vamos a Vertigo. A sequência em que aparece pela primeira vez, restaurante vermelho, vestido verde, Judy/Madeleine a ser observada por Scottie [James Stewart]. Levanta-se, caminha em direcção à câmara, gestos coreografados - quase que se ouve Hitchcock dizer: "Olhe para ali, vire a cabeça para aqui". Viviam-se ainda os tempos do studio system, com os actores integrados na linha de montagem: estamos autorizados a ouvir ecos disso numa sequência em que alguém está a ser como que vampirizado pelo olhar do(s) outros(s)?

Fiquei muito motivada por esse papel. Sim, através dele estava a dizer qualquer coisa sobre mim em Hollywood na altura. Era um papel multifacetado, podia fazer mais do que uma coisa ao mesmo tempo. Fiz outro filme na altura, Pal Joey [George Sidney, 1957], que era aborrecido porque eu só tinha de parecer sentir aquilo que a personagem sentia. Ao passo que em Vertigo podia parecer uma coisa e no interior sentir outra. A minha vida foi sempre assim, um misto.

Scottie vs. Madeleine/Judy tal como Hollywood vs. Kim Novak?

Exactamente. A Columbia, na altura, era dirigida por Harry Cohn, que era uma figura dominante, um tirano. Eu cheguei a Hollywood sem preparação alguma. Na verdade não queria ser actriz. Queria ser pintora [fez os estudos no Art Institute of Chicago antes de iniciar carreira de modelo]. Não tinha a mínima ideia do que era estar em frente a uma câmara. Ser um objecto de glamour era qualquer coisa de estranho para mim. Não me era natural. E, por outro lado, sempre fui muito teimosa. Não me é fácil receber ordens de alguém sobre o que tenho de vestir. Tenho sempre ideias muito claras sobre isso. Ou sobre as cores. Não aceito a direcção de forma fácil. Ou seja, aquilo que se passa em Vertigo era muito o que eu estava a passar na minha vida na altura...

Quando fala nas roupas e nas cores que não gosta que lhe digam que deve usar... confirma aquele braço de ferro com Hitchcock por causa do fato cinzento e dos sapatos pretos que não queria usar?

Hitchcock era duro. Mas era certeiro. Nunca gostei que as pessoas não escutassem o meu ponto de vista. Foi sempre isso que me perturbou. Mas se alguém ouvia o que eu tinha a dizer, passava a ser outra coisa. Hitch ouviu-me. Quando chegou a altura da prova de guarda-roupa - ainda eu não me tinha encontrado com ele -, disse a Edith Head, a figurinista, que não gostava do fato cinzento e dos sapatos pretos. "É melhor então falar com o realizador", disse-me Edith Head. Eu achava aquele guarda-roupa demasiado hirto, e os sapatos pretos incomodavam-me mesmo. E achava que era importante dizer isso e esperava que Hitch me ouvisse.

Fui ter com ele, disse-lhe o que sentia. Tenho uma teoria sobre sapatos pretos: acho que eles me fixam ao chão. Acho que as extremidades do nosso corpo não podem partir em direcções opostas. Sendo loura, qualquer coisa de etéreo, acho que os sapatos devem também "levantar-me" em vez de me fixarem ao chão. Expliquei-lhe isso, ele ouviu-me e depois disse: "Entendo, mas agora quero que use essa roupa." Agradeci, e vesti. Percebi que acabara de ouvir a primeira e única indicação sobre a personagem que tive de Hitchcock ao longo de Vertigo: ele queria que eu me sentisse desconfortável porque isso fazia sentido para Madeleine, que na verdade era Judy. E eu era Judy - por isso, quanto à roupa de Judy, Hitch disse-me: "escolha o que quiser". Ele queria que eu me sentisse confortável como Judy e desconfortável como Madeleine. Foi a única vez que discutimos a personagem. Gostaria de o ter feito mais vezes, mas de facto não foi necessário: o guarda-roupa dizia tudo sobre o desconforto da personagem, que começa por estar ao nível da pele.

Gostei muito de trabalhar com Hitchcock. Não tivemos problemas. Os únicos realizadores com quem tive problemas foram aqueles que nunca me ouviram.

A propósito de desconforto e de pele: queria ler-lhe o que um crítico britânico, David Thompson, escreveu sobre si no A Biographical Dictionary of Film. Os textos de Thompson são impressões pessoais, fantasias, dizem tanto sobre ele como sobre os "biografados"...

Não conheço, leia-me...

Ele escreve: "Filmar parecia um sacrifício para ela. Era como se a câmara a magoasse" ["Filming seemed an ordeal for her. It was as if the camera hurt her"]. Reconhece-se ou é pura fantasia?

Depende do papel que estivesse a interpretar. Várias vezes senti que a câmara era a minha melhor amiga. Tal como acontece quando conhecemos certas pessoas e deixamos que elas invadam a nossa privacidade e quando conhecemos outras não suportamos que elas estejam sequer ao pé de nós - nesses casos, paraliso. Depende. Sabe: sempre fui mais um reactor do que um actor.

Sinto que há, de qualquer forma, um momento diferente na sua filmografia, em que está mais livre, mais feliz se calhar: os filmes que fez com Richard Quine, e falo de Bell Book and Candle (1958) e de Strangers when we meet (1960)...

[silêncio] Eu estava apaixonada por Richard Quine. Éramos amantes. Confiava nele completamente. Claro que havia um sentimento diferente nesses filmes. A Novak que aí aparece é diferente - vulnerável de forma diferente. E em Bell Book and Candle, um filme de que gosto muito, voltei a ter o meu parceiro favorito, James Stewart, numa interacção bem diferente da de Vertigo, claro.

As reacções a Vertigo, na altura, não foram unânimes. O culto começou a formar-se depois. Havia o sentimento de que se fazia alguma coisa de especial ou era "just another movie"?

Senti que estava a fazer um filme, mas é difícil de explicar o que sentia concretamente. Como lhe disse, era um filme importante para mim porque através dele estava a libertar coisas que existiam dentro de mim. Era a oportunidade de expressar o que se estava a passar entre mim e Hollywood. Não estava a pensar no que as pessoas iam ou não pensar. Aliás, naquela altura eu não era propriamente uma pessoa bem recebida [pela crítica]. Se eu tivesse que me imaginar agora - ou seja, se tivesse que me pintar, porque é assim que funciono -, concebia uma figura com as mãos nos ouvidos e as mãos nos olhos, para não ver nem ouvir a reacção das pessoas. Estava muito confusa. Sempre que eu achava bem qualquer coisa, percebia que as pessoas, pelo contrário, achavam mal. Estava confusa. Não queria saber. E não ouvia o que as pessoas diziam - na verdade, ouvia e ficava ainda mais confusa.

Há um plano misterioso em Vertigo. Scottie acaba de transformar Judy em Madeleine: cabelo loiro, fato cinzento. Está nervoso, no quarto dela, à espera que ela apareça transformada. Ela aparece mas ele não acredita nela. O espectador também não: todos os traços de Madeleine, mas não é Madeleine, é Judy a fazer de Madeleine. Ela volta a arranjar-se e regressa. E, aí, vemos com os olhos de James Stewart: puro fantasma. Objectivamente, está tudo igual, só que...

É o mistério da rendição total. Quando finalmente dizemos: "Estou disposto a entregar-me a ti."

Deixou Hollywood nos anos 60, desinteressou-se do cinema. Foi fácil resistir a um comeback?

Desculpe, tenho de beber água, não falo assim, tanto, há tanto tempo [risos]... Quando Harry Cohn morreu... ele era o único a saber como arranjar bons argumentos... Começaram a dar-me papéis de beach girl, personagens muito leves, sem profundidade, que eu não queria interpretar. Tornou-se uma coisa ambivalente para mim. Parte de mim estava direccionada para a promoção da estrela, a outra parte era uma actriz que queria procurar melhores papéis. Mas provavelmente não estava significativamente motivada para isso, se calhar não gosto de andar atrás das coisas. E deixei Hollywood. Voltei ao meu primeiro amor, a pintura. Nos primeiros tempos era uma espécie de hippie, não fiz grande coisa, recomecei mais tarde. Mas não me arrependo, tive uma óptima vida. É claro que desperdicei alguma coisa nesses anos. Mas não me posso queixar: tive uma óptima vida, com os meus animais [Novak vive com o marido, um ex-veterinário, num rancho do Oregon, com cavalos e lamas]. É claro que gosto de ver filmes e quando vejo alguns ainda penso: "Olha, um papel que poderia ter sido bom para mim".

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