O fascínio de Pedro Costa explicado pelos japoneses ao mundo

O cineasta não é de Portugal nem da Europa, é do universo inteiro – isso, diz o cineasta japonês Nobuhiro Suwa, os japoneses estão, misteriosa e surpreendentemente, em melhor posição para o perceber.

Foto
Pedro Costa e Rui Chafes no Museu Hara, em Tóquio

Nunca se conseguirá totalmente entender as razões que levam os japoneses a serem tão entusiásticos com o cinema de Pedro Costa. Depois da estreia de No Quarto da Vanda, o realizador passou a ser presença regular nos festivais japoneses, nas universidades, nos cineclubes. Os media, dos mais especializados à Vogue japonesa, não o largam quando está em Tóquio. Onde esteve agora para inaugurar, com o escultor Rui Chafes, uma exposição que continua o diálogo que os dois têm mantido, através da escultura e do cinema, desde 2005, com a exposição Fora! no Museu de Serralves. O diálogo chama-se agora Mu – “nada”, como na inscrição na campa do realizador Yasujiro Ozu (1903-1963) – e pode ser visto no Museu Hara da cidade japonesa.

Sobre esse fascínio, fala-nos o realizador Nobuhiro Suwa (o autor de Paris Je t’Aime, H Story, M/other): “No Japão, os filmes do Pedro Costa são muito cool. Ele é um realizador com um enorme carisma.” Não é uma pop-star, mas é reconhecido, procurado e a sua presença esgota as salas e os teatros onde fala: é inesquecível a visão da bela sala do Kino-Haus, em Tóquio, desenhada pelo arquitecto japonês Toyo Ito a abarrotar de gente para ver, há semanas, a apresentação que Costa fez do filme Trás-os-Montes, de António Reis e Margarida Martins Cordeiro – ao realizador foi pedido um programa de filmes em paralelo à exposição. E é essa ideia de um cinema português que é uma língua universal, intensa, sensível, reconhecida e sentida por todos, independentemente dos códigos culturais, das memórias, das linguagens.

E é esta universalidade que o realizador japonês viu no cinema de Costa em 2001, no Festival de Locarno, com No Quarto da Vanda. Suwa reconheceu imediatamente qualquer coisa de raro: “Tratou-se de uma sensação da ordem da partilha, do segredo, do reconhecimento de um igual: percebi que tinha ali um amigo”, diz Suwa. Ficou impressionado com a forma rigorosa com que o realizador enfrentava cada filme e a sua estética concentrada no rosto humano: “A coisa mais difícil é filmar o ser humano de forma rigorosa. E o cinema do Pedro é uma das melhores práticas deste rigor.”

Um rigor que em nada tem que ver com as ideias de filme documental, porque, segundo Suwa, o cinema documental tende a uma relação de superficialidade com os objectos, em parte devido à superioridade e domínio que assume sobre as realidades que quer documentar. “Ora”, diz Suwa, “com Pedro Costa há uma total simetria e igualdade entre aquele que filma e aquilo que é filmado.” E por isso “podemos falar numa espécie de acto religioso em que o que mais importa é o modo como nos colocamos face a um ser humano. E quando vi o filme do Pedro senti-me muito mais próximo dele do que dos meus colegas japoneses. Posso dizer que me reencontrei no cinema do Pedro sem saber que ele era português, sem saber a situação política do seu pais ou o contexto económico.”

O Outro

E é o reconhecimento deste rigor e desta forma única e, segundo Suwa, admirável de filmar que motiva a recepção tão entusiasta que os filmes de Costa têm tido no Japão: “É verdade que o Pedro tem muitos admiradores no Japão e cada vez que ele vem às universidades dar uma aula a sala enche-se e os alunos vão atrás dele.” Este sucesso deu-se depois da estreia do No Quarto da Vanda. Antes, diz, “a circulação dos seus filmes estava muito confinada aos cinéfilos, mas com Vanda ele encontrou novos espectadores que, de uma maneira muito misteriosa e inesperada, se conseguiram reconhecer neste cinema. E cada um desses espectadores sente partilhar com o Pedro uma coisa essencial: a sua atitude relativamente ao Outro.” Pode dizer-se que se trata, fundamentalmente, de uma partilha de sensibilidade que não encontra resistência entre Pedro Costa e os seus espectadores japoneses: “Eles não conseguem perceber a história de resistência, mas conseguem perceber o amor presente em cada um dos seus filmes.”

E os japoneses gostam deste cinema não como quem gosta de uma coisa exótica, diferente, distante e muito típica de um povo do outro lado do mundo. Suwa não esconde as diferenças profundas entre o Japão e a Europa (para os japoneses, Portugal não existe, só existe a Europa). “Não gostamos de diferenças, nem das variedades, somos muito monos, não há estrangeiros, mas recebemos todos da mesma maneira. Por isso, na Europa os filmes do Pedro têm uma força que aqui perdem: não podemos entender a natureza dos conflitos ali presentes e o entendimento daquela guerra é-nos totalmente inacessível. Mas este aspecto talvez nos dê uma liberdade para ver melhor os seus filmes. Uma incompreensão política, social e histórica que nos permite perceber algo de essencial no seu cinema e, neste sentido, estamos mais livres do que os portugueses ou que os europeus para ver o cinema de Pedro Costa. Uma universalidade que mostra que os seus filmes dizem respeito não um objecto específico, mas ao universo inteiro.”

Para Suwa, no Japão só é preciso ter olhos para poder gostar do cinema de Pedro Costa, mas na Europa ver o seu cinema implica, mesmo que inconscientemente, o domínio de um código, a partilha de uma linguagem e o conhecimento prévio, mesmo que inadvertido, de uma história. E, por isso, talvez os japoneses consigam perceber Pedro Costa mais profundamente. Uma situação que não corresponde a uma escolha, mas é consequência dos limites e contigências da visão que tornam cegos muitos filmes e a muita vida que neles se apresenta.
 
 

Sugerir correcção
Comentar