A guerra que resiste à memória

A identidade do Portugal pós-colonial continua assente em sombras que é preciso desenterrar

Odocumento oficial relatando uma "acção punitiva" de militares portugueses nos arredores de Luanda, no início da guerra colonial, na qual são descritas decapitações rituais de alegados terroristas, abre uma nova porta para a reflexão sobre o passado colonial português. As histórias de decapitações e atrocidades perpetradas pelas tropas portuguesas não são novas. Assinalam-se hoje, aliás, os 50 anos dos massacre de Wiryamu, em Moçambique, já na fase final do conflito e cuja denúncia a nível internacional contribuiu em muito para o descrédito da guerra e da ditadura agonizante que a travava. O 25 de Abril pôs fim ao conflito, mas os revolucionários de 1974 e os responsáveis do regime deposto convergiram em manter um manto de silêncio sobre o que realmente se passara em África durante esses anos. A nossa memória colectiva da guerra foi construída a partir da instituição de um tabu aceite pelo regime democrático. Sobre esse apagamento continuou viva a lenda do colonialismo português "brando". Em vez do confronto com as atrocidades do colonialismo, instalaram-se sucessivas redenções. De uma certa forma, a velocidade a que se descolonizou foi a primeira. A vaga nostálgica dos anos 1990 - a nossa era "Out of Africa" - a segunda.

Agora, ironicamente, um Portugal em crise olha para uma antiga colónia como Angola ao mesmo tempo com medo, inveja e esperança. Uma relação ambivalente em que os fantasmas pós-coloniais continuam presentes dos dois lados. Mas a révanche subliminar de um regime cleptocrático como o de Luanda e o silêncio que revelações históricas como o documento que hoje publicamos perturbam pertencem a um mesmo desconcerto. A antiga potência que preferiu ocultar a sua memória imperial e a antiga colónia prisioneira dos seus complexos pós-coloniais são ambas reféns da mesma recusa colectiva em enfrentar e resolver o passado.

A violência de 1961, que descrevemos nas páginas a seguir, impressiona pela brutalidade e pela frieza com que é premeditado um crime bárbaro. Deixa em aberto questões sobre se essa violência decorreria ou não de ordens superiores, tácitas ou escritas. A ausência de outros documentos comprovando oficialmente actos de horror das forças armadas portuguesas durante a guerra, de que existem imagens ou testemunhos, talvez signifique que estes crimes destinavam-se a ser escondidos e a ficar esquecidos, por ausência de provas. Teimoso, o relato que revolta quem o lê cinco décadas depois, rompeu esse velho silêncio. O passado nunca nos abandona. Um Portugal democrático e pós-colonial tem a obrigação de enfrentar esse passado, sem culpabilizações e sem ilusões "benignas". A identidade colectiva constrói-se a partir da memória. Mas a identidade do Portugal pós-colonial ainda continua a assentar em sombras que é preciso desenterrar.

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