Lembram-se do padre Garibaldi?

Foto
Seminário do Fundão: "Estávamos ali meses seguidos, isolados, longe dos pais" PAULO PIMENTA

Nos seminários do Fundão e Tortosendo há muitos anos que há abusos sexuais, contam antigos alunos. Durante décadas ninguém falou. Há um pacto de silêncio

É o casarão da Manhã Submersa. O mesmo cenário, agora já não nos "espiando do alto da sua quietude lôbrega pelos cem olhos das janelas", como descreveu Vergílio Ferreira, mas sim espiado, com suspeição e pressentimento.

M. não quer lá voltar. Artur também não consegue ir de novo ao seminário, nem para reuniões de antigos alunos. Nem o padre José Fernando sente vontade de lá entrar outra vez. "Foi o período mais negro da minha vida", diz Artur.

Artur Aleixo, que hoje tem 59 anos e uma fábrica de bebidas alcoólicas, lembra-se da disciplina rígida, dos castigos, da violência e frieza, do ódio e dos abusos sexuais. Entrou para o seminário do Tortosendo com 10 anos. O pai não queria, porque eram necessários braços para trabalhar na terra. Mas a mãe sonhava ter um filho padre. Odiou o seminário desde o primeiro dia. A disciplina rígida, as horas para rezar, eram um choque para um rapaz habituado à liberdade do campo.

"A comida era horrível. Raramente havia carne ou peixe. Mas o padre vigilante, que almoçava sentado numa plataforma superior, víamo-lo a comer bifes todos os dias." Artur sempre gostou de desenhar, mas no seminário não deixavam. Um dia foi-lhe oferecido um livro de arte, publicado pela Gulbenkian. Segundo as regras, tinha de mostrá-lo ao prefeito, para inspecção e aprovação. O padre Garibaldi folheou o volume, e quando chegou à estátua de uma mulher nua, ainda que estilizada e sem qualquer conotação erótica, arrancou-a. Artur, que hoje se dedica à pintura e escultura e tem uma galeria de arte na Covilhã, ainda conserva o livro amputado pelo padre.

José Fernando é também oriundo de uma família pobre. Quis estudar no seminário para não ir como soldado raso para a guerra do Ultramar. Eram esses que morriam, segundo o que ouvia dizer na aldeia.

Entrou no seminário do Fundão por influência de um padrinho, mas o choque foi tão grande que chumbou no primeiro ano. "Eu estava habituado a correr descalço pelos campos."

Nunca se acostumou aos castigos no seminário. Tudo era proibido. "Se falávamos para o colega do lado, apanhávamos logo uma chapada." Não havia afectividade. "Nos anos que lá estive, não me lembro de um padre me ter dado um abraço. Eram injustos. Não havia humanismo."

Quando os alunos estavam na sala de estudo, os padres iam às camaratas revistar as suas malas, à procura de iguarias "proibidas" que tivessem sido enviadas por familiares. Se encontravam algo de boa qualidade, como por exemplo um chouriço, roubavam e levavam para o refeitório deles, recorda José Fernando Lambelho, hoje com 54 anos. "Quando for como eles, nunca serei como eles", pensava.

Os professores do seminário eram "padres paranóicos", diz. "Não se adaptavam ao trabalho nas comunidades, como párocos, e mandavam-nos de volta para o seminário."

Ao contrário dos colegas, M. quis ser padre. "Na época, nas aldeias, o padre era a única pessoa culta, diferente." Fala também dos castigos, mas acrescenta: "Os padres tinham prazer em bater. Não eram punições normais." Sob variadas formas, os abusos sexuais eram frequentes no seminário, diz M., 57 anos, que hoje é engenheiro numa instituição pública. Nunca mais esqueceu um episódio logo nos primeiros dias no seminário. Foi chamado ao padre conselheiro espiritual, que lhe fez perguntas estranhas. "Alguma vez viste as tuas irmãs nuas?", perguntou o padre. Ele respondeu que sim, sem perceber onde o conselheiro queria chegar. "E sentiste alguma coisa? Algo mudou no teu corpo?", continuou o padre, dando a entender com gestos que se referia a uma erecção. A seguir perguntou pelos animais domésticos. Se M., que tinha 10 anos, lhes tocava de forma imprópria.

Era ao conselheiro espiritual, e só a ele, que os alunos deviam confessar-se. Mas M. ganhou-lhe tanto medo, que nunca lá ia. Tinha de carregar a culpa por todos os pecados, que eram, a julgar pelas admoestações, sempre de cariz sexual. "Tínhamos de tomar duche em três minutos. Como a água quente demorava sempre mais tempo a chegar, tomávamos com água fria. Findo o tempo, os padres fechavam a água. Faziam isto para que não tivéssemos tempo para nos masturbarmos."

Não havia, durante o dia e a noite, nenhum momento de solidão e privacidade, para que não surgisse o perigo da masturbação. Mas todos os alunos sabiam que o conselheiro espiritual tinha um quarto para onde, diziam, levava os meninos, para lhes tocar.

José Fernando recorda-se também das perguntas do conselheiro. "Pecaste contra a castidade? E foi sozinho ou acompanhado? Foi no banho ou foi na cama?" E lembra-se da regra de dormir com os braços de fora dos cobertores, para que não se tentassem a tocar em si próprios. "A masturbação não só era pecado, mas também era prejudicial à saúde, diziam eles. Tornava-nos fracos e amarelos."

O sexo era um tema obsessivo no seminário. "Tudo o que provocasse prazer era pecado, era criminoso", diz M. Artur lembra-se de como os padres incutiam o ódio pelas mulheres. "Era como se elas fossem o demónio."

Em termos de educação sexual, a versão que se ensinava era a do "abraço muito apertado entre homem e mulher, no qual uma semente era depositada", diz José Fernando. No entanto, havia com grande frequência sessões de educação sexual, a sós. No seminário do Tortosendo, quem se encarregava disso era o padre José Garibaldi, o prefeito.

Os alunos eram chamados ao seu gabinete para longas e íntimas sessões. "Ele falava-nos das modificações que ocorriam no nosso corpo", conta Artur. "Mostrava imagens e aproximava-se muito. Insinuava-se. Ficávamos aflitos." Aos alunos que não tinham uma reacção muito decidida, ele avançava mais. Tocava-lhes. M. conhece vários casos de antigos alunos a quem Garibaldi acariciou os genitais. Eles próprios lho contaram.

Na altura, nenhum se queixou. "Estávamos muito desprotegidos. A quem nos poderíamos queixar?", diz Artur. "Estávamos ali meses seguidos, isolados, longe dos pais, que eram analfabetos e também não saberiam o que fazer."

M., Artur e vários outros antigos colegas encontram-se regularmente e falam sempre disto. Do padre Garibaldi e outros, designadamente um do Fundão que abusou das crianças durante várias gerações. Têm falado disto nos últimos 40 anos, mas decidem sempre não denunciar publicamente, porque pode haver represálias. "As elites da região foram formadas no seminário", diz M. "Quem falar disto corre o risco de ser despedido, ou ter problemas. Tem havido um pacto de silêncio."

Tanto M. como Artur e José Fernando foram expulsos do seminário. M. fugiu várias vezes, "para não apanhar pancada". José Fernando foi expulso pelas suas ideias "diferentes". Teve uma namorada secreta, aos 16 anos, mas, após ter tido relações sexuais, sentiu repugnância, por causa das ideias que os padres lhe tinham incutido. Acabou por ser ordenado padre em Évora, comprou uma mota, tornou-se o ídolo das concentrações de motards. Hoje luta com um cancro.

Artur, de uma das vezes que fugiu, foi apanhado por um guarda a fazer desenhos num banco de jardim, na Covilhã. Os padres do seminário reuniram-se e decidiram expulsá-lo, após terem apurado a verdade dos factos: Artur tinha esculpido com um canivete dois corações e uma seta no banco de jardim.

Sugerir correcção