Portugal presente

Há muita coisa errada no país, mas depois chegam discos como este segundo volume do projecto O Experimentar e é inevitável: orgulho nacional

Podia ficar aqui o dia inteiro, a semana inteira, meses inteiros, a gabar o segundo tomo do projecto O Experimentar, do açoriano Pedro Lucas, a descrever cada tema, cada sample de voz, cada instrumento, e a meticulosa justaposição que Lucas faz das fontes locais usadas com a instrumentália orgânica e a electrónica digital. Podia percorrer o dicionário em buscar de adjectivos, acabar frases com pontos de exclamação, criar um movimento na Internet em favor da cultura açoriana. Prefiro resumir: "2: Sagrado e Profano" é a obra com que João Aguardela sonhou quando começou o projecto Megafone, é os Gaiteiros de Lisboa deslocalizados para os Açores e adaptados ao século XXI.

No essencial, esta segunda obra é “apenas” um aprimoramento do caderno de encargos que estava subjacente à primeira: o cruzamento de melodias tradicionais açorianas (sampladas de recolhas ou captadas em estúdio) com as linguagens da electrónica. Só que em "2: Sagrado e Profano" Lucas consegue quase um milagre: criar o instrumental de acordo com o que as melodias pedem. Em vez de dois mundos opostos que colidem, temos um só; em vez de um disco em favor da preservação da memória, temos um disco de hoje, do aqui e agora. A linha unificadora é a melodia açoriana, um lamento melancólico e bucólico, com soluções variadas: em "Pai Paulinho" orbitam em volta da imensa voz de Carlos Medeiros uma bateria que soa a afro-beat em lento e manco e um órgão Hammond; em "Braços" os efeitos de sintetizador lembram os Animal Collective no dia de inspiração que nunca tiveram - a meio há uma viragem e entram guitarras high-life; uma tuba, uma viola caipira em contratempo e flautas rodeiam a voz de Miguel Macherte em "Chamarrita"; em "Minha voz vou levantar" um Hammond adensa a atmosfera fúnebre e Carlos Medeiros, que canta em dueto com um sample antigo, soa a um Nick Cave das Furnas.

Lucas não tenta limpar o som; se um sample é desafinado ("Vai de roda", por exemplo), não procura escondê-lo, nem criar um instrumental certinho - antes usa os erros e a incorreção a seu favor. O tom é quase sempre negro, arrastado, com pontuais mudanças de ritmo. Num par de canções, o disco raia a comoção mais funda: a melodia de "São José a caminhar" (um sample sacado de uma recolha de 1960) é aterradoramente bela e Lucas cria um simples acompanhamento de percussão e efeitos digitais, que amplia a emoção, torna-a épica; em "Lira", com a inacreditável voz de Zeca Medeiros, um lindo arranjo de viola caipira prepara um final arrepiante, sempre a subir. Há muita coisa errada neste país, mas por vezes, como em "2: Sagrado e Profano", um tipo tem orgulho em ter nascido neste fim de mundo. “A morte a mim não me mata/ firme e constante sou eu”, canta Zeca Medeiros. Isto (estas palavras, este disco) não é o passado; é o presente.

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