Miguel Loureiro estreia-se como dramaturgo num texto desconcertante sobre o poder e a ilusão

O encenador e actor estreia hoje a sua primeira peça Pergunta a duquesa ao criado, que surpreende pela inventividade e coragem narrativa

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Miguel Loureiro fotografado em 2010 Rui Gaudêncio

Há quem tenha métodos de escrita e quem se permita a que a seja a vida o próprio método de escrita. Miguel Loureiro, 42 anos, gosta de escrever em cafés e bibliotecas entre as quatro e as seis da tarde. São assim os seus Outonos. Na Primavera escreve em jardins, no Verão na praia e, no Inverno, gosta de escrever em casa. Mas hoje, à noite, a partir das 21h, no Mosteiro de São Bento da Vitória, no Porto, os actores Lígia Roque e Luís Araújo irão ler a primeira peça de teatro que o encenador e actor escreveu, a convite do programa Leituras no Mosteiro, coordenado por Paula Braga, do Centro de Documentação do Teatro Nacional São João, pelo encenador Nuno M. Cardoso e pelo actor Daniel Pinto.

Pergunta a duquesa ao criado, entremez, diz ele, diatribe, chamamos nós, será apresentada no âmbito de um projecto que há mais de ano e meio decorre no mosteiro e que hoje terá sessão dedicada à novíssima dramaturgia portuguesa, em que se incluirá De Fora, de Joana Craveiro, e excertos de Nióbio de Carlos Costa e Ana Vitorino. A sessão complete-se com leituras de peças dedicadas às crianças, duas delas em estreia mundial: Esperança ou O parque de estacionamento, de Carla Maia de Almeida e Menina Micaela Maia, e Joana e o Bulldozer, de Pedro Eiras, bem como excertos de Ai que medo, de José Carretas.

Não fosse uma encomenda, e seria o bastante para que Miguel Loureiro se afastasse de tamanho chapéu. O seu teatro, nas margens de uma estética dominante e crítico de uma filosofia de intervenção, tem procurado o resguardo de referências e de valores que, sendo estruturantes, parecem anacrónicos quando se fala, precisamente, de teatro de intervenção.

Os seus dois últimos apresentações A Vida de Maria, no teatro São Luiz, no final de 2011, e Lavda (Exercício de Piedade), na capela do Teatro Taborda, ambos em Lisboa, sugeriam um entendimento da palavra como exercício de comunhão e, partindo de poemas de Rilke, no primeiro caso, e de salmos religiosos, no segundo, constituíam-se como espaços de profunda e íntima reflexão.

Pergunta a duquesa ao criado, sendo a primeira peça do encenador, é também um momento textual e criativo habitado pelo cruzamento de leituras diversas, mundanas e hipnóticas, convulsas e imaginadas. “Um encontro”, diz. Um diálogo, acrescentamos nós, que dá continuidade a uma pesquisa laboratorial que o distingue na cena contemporânea nacional e que o levou a apresentar objectos de uma curiosidade imensa, como Como rebolar alegremente num vazio exterior, co-assinado com André Guedes (Alkantara Festival, 2010), Juanista Castro (Casa Conveniente, 2008 – menção honrosa da Associação Portuguesa de Críticos de Teatro) e Spitx (Maria Matos, 2009). Encenações onde conviviam o poder político, a utopia e a ilusão.

Miguel Loureiro define este método como o seu “legalismo”. E nele cabe tudo: o interesse pelo que é da ordem do doméstico, a vida das frutas e dos legumes – o que o levou a solicitar à Deco uma tabela dos produtos adequados a cada época – às fábulas de Esopo (e há uma que percorre o texto, a de uma rã que carrega um escorpião às costas na travessia de um rio), as pessoas que vai observando e uma certa ordem nos dias que se compõem através de leituras e reflexões. E o texto que foi surgindo, entre cafés e bibliotecas, à força de uma página por dia, “ou dias em que não escrevia nada por não ter vontade”, fala de criados e de patrões, de ursos que parecem lobos, de avelãs, de convidados que não chegam, de criadas que já lá não estão. Fala, muito, de solidão. Fala, muito, de poder. Fala, muito, de liberdade. E de imaginação, sobretudo.

“Aquilo parte de particularidades minhas, obsessões, formas de organização mental do dia”, diz. E será isso, nesta aproximação a um modelo aristotélico de composição – no qual a narrativa temporal dialoga com a temporalidade do próprio texto, da sua duração – que Pergunta a duquesa ao criado se constitui como um exercício de exploração dramatúrgica muito rico. Tão rico que, na sua velocidade, corre o risco de baralhar, de nos perder, de se deixar ficar, dolente, na superficialidade da graça. Miguel Loureiro não parece incomodar-se com isso. Pergunta a duquesa ao criado não existe “em função de imperativos narrativos” nem “ao serviço da escrita utilitária”. O que move este texto, o que move o autor é “uma reorganização de lógicas operativas que existem em diálogo com um nonsense que não é tão nonsense quanto isso”.

“Não tenho paixões arrebatadoras, nunca falarei da falência da comunicação, acredito numa escrita objectiva. Tão objectiva que se torna particular, mas não absurda”, diz Miguel Loureiro. “A maior parte da escrita contemporânea é ininteligível, está parada em três ou quatro ideias e depois juntam-lhe umas imagens para se ilustrar”. Loureiro quer demarcar-se de “uma dramaturgia nacional que usa um vernáculo para pôr as coisas ao nosso nível, que procura pontos de contacto com a realidade, através de uma linguagem que torna tudo muito justificado”. Gosta de coisas assim: “Três transexuais no frio da Sibéria”, uma frase do dramaturgo argentino Copi, “para quem nada é justificado”.

Miguel Loureiro gosta dessa liberdade. Os seus espectáculos vivem da liberdade dessa colagem. “Não me interesso pelo universo actual que se anda a fazer. Ainda acredito que para se falar de coisas nobres se tem que falar da aristocracia. Não vale a pena baixar a fasquia. A vida de uma criada seria muito limitada”. Miguel Loureiro poderá rir depois de dizer uma frase assim, mas o seu teatro é habitado por referências cultas, vive de uma liberdade de associação que nunca cede à facilidade e resiste, no essencial, a estéticas e modas temáticas que pudessem fazer o gosto de público, crítica e programadores que buscassem uma provocação promovida pelo que poderia ser visto como uma décalage.

O texto voltará a ser lido em Junho no Espaço da Ribeira, em Lisboa, integrando o festival de peças curtas promovido pela companhia Primeiros Sintomas.

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