Debates políticos: picardias espúrias

Os debates vagueiam muito na forma, e pouco nas soluções, e esta, poderá ser uma das causas dos cidadãos desligarem-se da política: abstendo-se de votar, por exemplo

Foto
LoWVoC/Flickr

Não estamos todos saturados das picardias esquerda "versus" direita? Peço perdão pela retórica; eu sei que não devo porfiar as opiniões dos leitores, mas não consigo resistir à generalização neste tema. Consigo imaginar o leitor já a torcer o nariz, pronto para condenar a minha intromissão abusiva, mas, em defesa da minha posição, solicito calma e peço parcimónia nas conclusões apressadas. Afinal a política está pejada de sofismas, porque não usar a mesma moeda para derrubar as falácias da política lusa?

Vou simplificar — tentar explanar. Quem conhece o livro ”Sabedoria das Multidões", de James Surowiecki, e releu o livro com gosto — com mais apreço inclusive que o autor do prefácio da edição portuguesa — descobre a possibilidade de enquadrar as decisões colectivas em três classes:

a) Decisões de Conhecimento.

b) Decisões de Cooperação.

c) Decisões de Coordenação.

Muitas decisões de âmbito político obedecem a esta tipologia, mas grande parte do debate não se centra neste tipo de decisões. Os debates vagueiam muito na forma, e pouco nas soluções, e esta, poderá ser uma das causas dos cidadãos desligarem-se da política: abstendo-se de votar, por exemplo. A percepção sobre a política é crescentemente negativa: esta prejudica mais do que beneficia a comunidade.

Há uma tendência nefasta no discurso político-partidário que contribuí para esta alegada saturação. Cada partido possui "a sua 'solução' 'concreta'" para os problemas do país, cada um apela ao voto promovendo seu "rumo" — o único verdadeiro e adequado —em sobreposição a todos os outros — inferiores e impróprios.

Lógica maniqueísta

As regras de funcionamento partidário alimentam esta lógica maniqueísta. Não há espaço dentro dos partidos para reconhecer erros, nem margem para dispor méritos aos adversários. Os partidos funcionam como máquinas, uma mera reflexão crítica pode ter o mesmo impacto de um grão de areia que arrasa motores. O valor de um líder político alicerça-se no peso eleitoral diante dos cidadãos, na capacidade de mobilização dos crentes e na capacidade de dificultar a vida aos adversários. Parar para pensar é um lapso de carisma, e há sempre um oportunista com carisma afiado preparado para ocupar o vazio.

Assim, a estratégia partidária funciona como um mero jogo de soma nula em todas as vertentes — um voto conquistado equivale a um voto perdido —, e isto incita as picardias espúrias, como se a política fosse uma luta de guerrilha levada a cabo com setas de descrédito e louvores asseverados. É difícil quebrar totalmente este modelo, mas o sistema poderia funcionar de outro modo. Os partidos vencedores deveriam ser aqueles com maior capacidade de confluir posições, sensibilidades e perspectivas divergentes num projecto comum para o país.

A Assembleia da República seria o órgão de soberania ideal para obter decisões políticas que fossem resultado do encontro e integração de diferentes perspectivas e pontos de vista. As leis e os orçamentos deveriam ser obras de execução comum, construídos com negociações, cedências e compromissos.

Uma utopia? Talvez, mas não é uma fantasia leviana. Dou um exemplo que poderia ter efeitos práticos: a aprovação de orçamentos poderia exigir uma base parlamentar mais alargada do que a maioria actual. Creio que existem outras possibilidades, todavia, um Governo, tendo de lidar com este desafio, não seria compelido a um maior desvelo orçamental, isto não o obrigaria a auscultar todas as partes e integrar propostas alternativas à sua proposta inicial? 

Sugerir correcção
Comentar