Parece mentira
O Lusitânia Expresso partiu com 120 pessoas a bordo - jornalistas, activistas, estudantes - e muitas flores para serem depositadas numa campa de cemitério de Díli. Tinham passado quatro meses do massacre de Santa Cruz. A ditadura de Jacarta fez uma demonstração de força e o pequeno navio voltou para trás. Duas décadas depois, alguns dos que participaram na missão Paz em Timor cumpriram o que ficou então por fazer. Em 1992, Rui Cardoso Martins esteve no Lusitânia em reportagem para o PÚBLICO. Agora voltou ao local onde não chegou a estar
Um pseudo-acontecimento, um gesto mediático, só isso. Mas não é costume acontecer tanta coisa num pseudo-acontecimento, pois não?
- É preciso o mundo estar muito louco para ser preciso fazer uma coisa destas, disse-me alguém no convés do Lusitânia Expresso, ao sairmos para o mar de Timor. Não registei o nome dessa voz, não me lembro da cara, mas foi o que vi e ouvi em 1992, há 20 anos. Era como a voz colectiva do navio, alguém colado à amurada de um ferry boat caquético que navegara semanas e semanas para chegar à Austrália, atrasado por tempestades no Golfo Pérsico, pela temperatura excessiva do Índico, a tossir os motores desde Lisboa, carregado de dívidas. Em escassas horas, no porto de Darwin, metera a bordo 120 estudantes, activistas de 23 países, jornalistas, mais um ex-Presidente da República - general Ramalho Eanes - e o navio afastava-se do cais para ir depositar uma coroa de flores no cemitério de Santa Cruz. Uma tempestade eléctrica projectava-se no telão do céu, faíscas enormes nos limites do mar, e os timorenses exilados na Austrália corriam até ao último centímetro da doca, fazendo-nos adeus com a cara molhada. À velocidade de dez nós, pesado como o nervoso dos passageiros, que se derretiam pelo chão e nos sofás, num cansaço épico, a recuperarem os músculos, mas concentrado como os profissionais que afinavam os rádios de transmissão, o Lusitânia poderia chegar a Díli quatro meses exactos depois do massacre.
Logo nessa tarde passa um avião de reconhecimento, rasa o mastro mostrando a bandeira branca e vermelha da Indonésia. De madrugada surgem pontinhos vermelhos no radar. Pela manhã, temos uma escolta da marinha militar, lado a lado. A 11 de Março, o Lusitânia é barrado por fragatas de guerra, helicópteros, lanchas de assalto.
O capitão Luís Santos, ironicamente, dirá que se sentiu honrado com a importância que lhe davam. "Três fragatas!" O Lusitânia, de facto, era um velho traste marítimo, feito para as águas frias do Norte da Europa, nem conseguia refrigerar o motor numa sopa tropical a 29 graus centígrados.
À vista desarmada, vemos agora as peças de artilharia, em posição de tiro, e comandos de colete, que parecem armados, à espera junto dos botes erguidos sobre a água. Os helicópteros melgam pelo ar. Finalmente, duas das grandes fragatas cruzam-se de proa, de frente para o Lusitânia, cortando o caminho. Pela rádio, um homem com voz de vilão de filme, numa estridência de balão de banda desenhada, em inglês nasal, começa a berrar ordens. Uma cena tipo Tintin, o repórter, admito o preconceito mas ainda trago uma fala nos ouvidos:
- This is Papa Kilo Alpha India, indonesian warship!
Estou a um metro do capitão, é o homem que manda na nave e pega no telefone. Mas o altifalante mantém-se aberto, ouvimos tudo. Rui Marques, o director da missão, marcha na ponte de comando como um tigre apertado na jau