Um músico na catástrofe

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Desde 2001 que Valete não toca em Lisboa. Desde 2006 que não tem disco novo - só chega em 2013. Desde 2011 que é músico profissional. Hoje actua no Campo Pequeno, preparando o terreno para "Homo Libero"

Em Março deste ano, Valete - arredado dos discos de estúdio desde que lançou Serviço Público - não deu um grande concerto no Campo Pequeno.

Devia ter dado: a data estava marcada e podia ser considerada da maior importância, antes de mais porque seria a primeira vez que Valete ia tocar em Lisboa desde 2001. Mas em Março Valete acabou no hospital. Não pelas razões habituais nos músicos (drogas ilegais, barbitúricos, tentativas de suicídio), mas por um problema mais comum em crianças pequenas: "Tinha uma má ligação entre a laringe e o ouvido." "Como não tinha treino de uso de voz, estraguei esta zona toda", conta, em conversa com o Ípsilon num centro comercial de Lisboa, perto da zona onde está a trabalhar no próximo disco. Para se explicar faz um gesto que abarca o ouvido e a garganta. O episódio tem o seu lado cómico: Valete teve de ir fazer terapia da fala para aprender técnicas de respiração e descobriu uma forma de aprimorar o seu rapanço. "O que eu faço agora é: sempre que rapo um verso respiro profundamente", diz, e exemplifica.

O criador de Educação Visual podia ter subido aos palcos ao fim de um ou dois meses, quando já estava recomposto. Mas, como o terceiro e novo disco era para sair em Outubro, resolveu marcar a data de hoje. Só que chegado a hoje Valete não tem disco para mostrar: Homo Libero, que tem sido minuciosamente tratado em segredo, só sairá em 2013, sendo que ele promete tocar esta noite, ao vivo no Campo Pequeno, faixas do álbum.

Homo Libero, explica Valete, "é um disco conceptual", como aliás os dois anteriores podem ser considerados, se alargarmos um pouco o conceito. É a versão que Valete faz "do homem novo do Lenine", "mas sem conotação ideológica": "Precisamos de um homem novo, menos materialista", diz o rapper da Damaia, deixando as maleitas de saúde de lado e regressando ao tom político que lhe é habitual. "Um homem que possa adaptar-se ao que vem aí - e que é uma catástrofe."

E aqui temos: Valete está sem editar há seis anos e no seu regresso traz não só uma dezena de beats & rimas, mas também uma revisão do que o Homem deve ser. Ele sempre teve este lado, ambicioso, propício a grandes gestos que abarcam o todo. "Fazes o ensino escolar, tens de casar e de ter filhos. Esta coisa foi-nos imposta. Mas será que nos deixa felizes?", pergunta. "A maior parte das pessoas faz estas coisas porque estão instutídas", diz, como se apenas agora tivesse acabado de descobrir o tédio da existência, a razão do álcool, das drogas, do cinema, da literatura e do adultério.

A dúvida de Valete tem uma raiz pessoal: após vender cinco mil exemplares de Serviço Público, não se dedicou por inteiro à música e ao seu sucesso; foi técnico comercial numa empresa de recursos hídricos e passou três anos fechado num escritório oito horas por dia. Foi, diz, "infeliz desde o início". Mas então conheceu uma pessoa que mudou a sua vida. "Um gajo que é actor, de 40 e tal anos. Há 20 e tal anos que mora num T0. Optou por não casar e não ter filhos. Muitas vezes quase não tem dinheiro para viver. E estava realizado, estava feliz."

Valete tinha o seu emprego, a namorada que queria um filho, e não se conseguia ver nesse papel: "A maior parte dos meus amigos não suporta as suas relações. Quem é que institui isto?"

Para um branco, diz Valete, isto pode não parecer importante, mas "na comunidade negra há menos separações". "Se tens 30 anos e não tens uma mulher e filhos, então algo está mal". Não afirma claramente que há homofobia na comunidade negra portuguesa, mas acrescenta que "em alguns países africanos um gay corre risco de vida".

A decisão que tomou "foi radical": "Separar-se, não ter filhos, não casar". Mas o disco não se centra apenas nesta opção pessoal: abre para a visão do tal homem livre, e depois olha para o que estamos actualmente a viver, com o seu habitual olhar sociológico (é sociólogo de formação). O tema dos casais, esse, parece estar por todo o lado: "O primeiro tema é sobre casais divorciados que estão a viver na mesma casa."



Do Facebook ao Campo Pequeno

É suposto que Homo Libero seja um disco com esperança - até porque entretanto Valete atirou para a gaveta outro disco que fez, por ser "demasiado catrastrofista". O mistério é como é que ele faz a ponte entre o novo homem e o mundo actual que o disco também pretende retratar, o mundo "que está a chegar a um colapso: em breve vais ter 50% ou 60% de desemprego; vamos ter de criar uma nova forma de viver."

Musicalmente, Homo Libero também vai trazer mudanças - Valete sente que os seus discos anteriores tinham "alguma precariedade musical": "Eu sou só um rapper, não sei nada de música; peço uns beats e rimo." Mas os novos produtores, diz, são músicos e fazem um som mais orgânico. É nesse sentido que pretende ir: "É um disco mais funk, porque o hip-hop é soul e funk. E eu também sou funk."

Desde que se despediu, Valete abriu a meias com o pai uma panificadora em São Tomé, que mais tarde foi à falência. Pelo que teve de voltar à música: "Por sorte em 2011 fiz dois ou três concertos bem pagos, que me possibilitaram ter tempo para fazer o disco. Mas eu nunca queria dar concertos. Para mim a música era estar sempre a fazer rimas e quando tinha beats ir para estúdio", confessa.

Esses dias acabaram: desde 2011, Valete é músico profissional. E foi ao tornar-se músico profissional que concluiu que "hoje há muito mais público para o hip-hop", mas "um público que ainda não está habituado a pagar por concertos". Nesse aspecto, considera, o hip-hop português "só agora está a chegar à idade adulta". O seu habitual lado corporativista vem ao de cima: "A sustentabilidade dos MC só chegará quando entrarmos no circuito dos concertos maiores, organizados por nós", reflecte.

Olhando para a história do hip-hop em Portugal, Valete diz que está tudo por fazer: "Houve dois ou três grandes concertos: um do Rapública na altura em que saiu [o disco]; outro de celebração dos 18 anos da colectânea, no Porto, em Setembro, com os Dealema e NBC e outros; e o do Boss AC no Coliseu. É pouco." Fazendo uma estimativa por alto, o rapper pondera que se chegar às 1.500 pessoas isso será suficiente para "fazer do concerto o segundo ou terceiro maior de sempre do hip-hop português".

Agora é a vez de Valete. Tudo se conjuga para um concerto - na definição dele - em grande. A abrir vai estar DJ Ride. Xeg e Regula vão ser os MC de serviço da primeira parte. Entre os convidados de Valete estão Bónus, Adamastor e Sam The Kid.

Da forma que Valete põe as coisas, o concerto quase que serve para medir o pulso ao próprio estado do hip-hop em Portugal. O mais certo é que dê para perceber em que estado está a carreira dele. "Há um público que apanhou o hype do Serviço Público. Para esses eu estou esquecido. Mas o público que sente Valete está todos os dias no meu Facebook."

Valete só tem de explicar-lhes que o Facebook não é o Campo Pequeno.

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