Quanto vale um prémio?

A última vez que o vi foi num lar. Não um lar para onde se vai à espera da morte como foi o protagonista de A Máquina de Fazer Espanhóis. Este tinha vistas longas, mar ao fundo. Ele estava com um homem que morava ali como se mora em casa, rodeado dos seus livros, quadros, fotografias, esculturas. Cruzeiro Seixas, aos 90 anos, e Valter, então com 38. "Se chegar a esta idade, que seja com esta altivez", diz o mais novo. Foi pedido a Valter que escolhesse uma personalidade de outra geração, com quem tivesse uma conversa. Ele escolheu Cruzeiro Seixas para conversar e a justificação foi a de que os quadros do pintor/escritor surrealista lhe ensinaram a ver a luz numa tela e a partir daí perceber melhor como tinha de comunicar essa luz noutras linguagens. Escolheu-o também por outro motivo: ver se o velho mestre já tinha feito as pazes com a sua obra. Percebeu que sim, e houve um final feliz como quase nunca há na literatura de Valter. A literatura dos desvalidos, como já lhe chamaram, obcecada com a doença, a morte, a miséria, a tragédia do amor, das infâncias perdidas e homens e mulheres gastos. Mas havia ainda outra, a maior justificação para a escolha: Cruzeiro Seixas era uma espécie de síntese para Valter Hugo Mãe. Poeta, escritor, artista plástico. Provocador.

No princípio, Valter sonhou ser poeta e quis ser um poeta como o Al Berto. Daí a opção pelas minúsculas no nome que abandonou em 2011, muitos anos depois de ter feito o seu percurso na narrativa ficcional. Agora assina com V, maiúsculo, porque se a sua escrita sobreviver, lhe sobreviver, ele não quer a caricatura do escritor minúsculo. Tem 41 anos, pronúncia do Norte onde não deixa de viver, cinco romances publicados, poesia, livros para crianças, dá voz a uma banda chamada Governo, arrisca nas artes plásticas. Tem a ideia de que a arte, com A maiúsculo, tem um poder redentor e que "o amor é uma estupidez intermitente mas universal". Pausa. Aqui entra a literatura. Valter Hugo Mãe não disse esta frase, escreveu-a no tal romance A Máquina de Fazer Espanhóis, em 2010, e que agora lhe valeu um dos mais cobiçados prémios literários de língua portuguesa. Pela visibilidade e pelo montante em causa. 50 mil reais, qualquer coisa como 18.500 mil euros. No caso de Valter, a multiplicar por dois, porque, além do romance, ele ganhou também na categoria principal, o Grande Prémio PT.

A frase que Valter escreveu no quarto romance da sua carreira de escritor pode ser atribuída ao velho magoado com a morte da mulher, a morte que tudo azeda e, mais do que nunca, lida com o medo, com o tédio, a comiseração. É um livro sobre a velhice e, com ela, a perda, e que veio depois de um outro livro, O Apocalipse dos Trabalhadores (2008), cheio de provocações divinas e muito riso e outro tema trágico, a exploração.

A escrita de Valter Hugo Mãe não se fecha num sentimento. Embora a nostalgia esteja quase sempre lá, o optimismo que vai dar em desgraça, a poética da prosa, o cuidado com as personagens que, no entanto, por vezes lhe escorregam (sobretudo no último, O Filho de Mil Homens, talvez o seu livro menos conseguido). Quem arrisca... Mas há outras que se lhe colam. Baltazar Serapião, o pobre que vive na Idade Média, que se apaixona por Ermesinda e quase enlouquece por isso. Foi Baltazar, na sua escrita arcaica, que deu a conhecer Valter, ainda que Valter já tivesse publicado O Nosso Reino, a estreia, em 2004.

O Remorso de Baltazar Serapião ganhou o Prémio José Saramago, numa altura em que o escritor confessava que não esperava mais nada desse livro, porque outro livro já tinha vindo e ele já dava entrevistas sobre essa nova escrita, outra, diferente, e ia dizendo, como disse numa entrevista, que achava que um dia destes ia morrer de amor. Ele transporta este pathos. Ele, que fala lento, que escolhe as palavras, não se trai na escrita. E talvez nessa confissão do autor já estivesse António Jorge Silva, de 84 anos, o velho de A Máquina de Fazer Espanhóis, livro onde o autor tenta nunca escorregar da contenção. A emocional e a literária. Silva, um dos muitos Silvas deste país, é um homem em queda. "... a laura morreu, pegaram em mim e puseram-me num lar com dois sacos de roupa e um álbum de fotografias". Os críticos brasileiros que atribuem o prémio PT, e já o tinham entregue em 2007 a Gonçalo M. Tavares, com o livro Jerusalém, leram isto. Já conheciam Valter de um périplo vitorioso na FLIP de 2011, onde Valter soube estar à altura da ambição de quem quer ser não apenas mais um escritor. E encontraram eco. Concorria com grandes nomes da literatura brasileira. Bernardo Kucinski, Julián Fuks, Michel Laub (que está a chegar aí pela Tinta da China). Ganhou. E não é difícil adivinhar-lhe a emoção nem prever a interrogação de muitos. Vale isso? Valter Hugo Mãe, ao contrário de muitos, é lido. Tem uma obra que o reflecte e uma imensa vontade de continuar a arriscar. Catem-lhe as falhas, mas não esqueçam o aplauso dos bons momentos literários. Ele é dos que não se deixam de inquietar, nem dos que se acomodam. Sabe o que quer da escrita. E talvez a pergunta não seja: vale ele isso? Mas sim: como são olhados os que ganham?

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