Sotheby's leva a leilão (um) piano de Casablanca

Instrumento vai à praça a 14 de Dezembro, aniversário da estreia do filme, e a leiloeira espera conseguir perto de um milhão de euros

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O piano do leilão na cena do flashback de Paris DR

O piano que a Sotheby’s vai leiloar em Dezembro, em Nova Iorque, pode bem ser o piano mais famoso do mundo, ainda que nenhum Horowitz, ou Gould, ou qualquer outro pianista de renome, o tenha alguma vez tocado. O instrumento deve a sua considerável celebridade ao facto de aparecer numa das mais comoventes cenas daquele que é provavelmente o filme mais icónico da história do cinema: Casablanca (1942), de Michael Curtiz. Daí que a Sotheby's tenha agendado o leilão para o dia 14 de Dezembro, quando se cumprem exactamente 70 anos sobre a estreia do filme.

A peça já fora leiloada em 1988, tendo então sido arrematada por um coleccionador japonês, que pagou por ela 154 mil dólares. Agora volta a colocá-la no mercado, e é provável que consiga rentabilizar o investimento, já que a expectativa da leiloeira é que o instrumento atinja entre 800 mil e 1,2 milhões de dólares (924 mil euros).

“Sotheby's vai leiloar piano de Casablanca”: é assim que, com poucas variações, a notícia tem sido anunciado pelas agências e pelas edições online da imprensa internacional. Um título que (já se verá porquê) pode revelar-se um tanto enganoso. A muitos dos leitores que viram o filme, trará imediatamente à memória uma das suas cenas mais fortes de Casablanca: o momento em que o pianista negro Sam (Arthur “Dooley” Wilson) acede ao nostálgico pedido de Ilsa (Ingrid Bergman) e toca As Times Goes By, desobedecendo assim a Rick (Humphrey Bogart), que entra furibundo no salão do seu estabelecimento, o Rick's Café Américain, disposto a descompor o músico que ousara entoar o tema proibido (de tão amado).

Esse diálogo em que Ilsa pede a Sam que toque a mesma canção que costumava tocar em Paris quando ela e Rick ainda estavam juntos, tornou-se famoso não só por corresponder a um momento especialmente pungente do filme, mas também por ter sido tantas vezes mal citado. Ingrid Bergman diz apenas “Play it, Sam”, mas o espectador, que já viu o flashback de Paris, tem tendência a inventar um “again” (“outra vez”) e ouvi-la dizer “Play it again, Sam”. Ou seja, uma citação errada mas que corresponde a uma verdade psicológica. Já com a notícia deste leilão passa-se um pouco o contrário: é verdadeira mas pode facilmente induzir em erro.

Afinal havia outro

É que o piano que vai estar em leilão não é, ao que tudo indica, o piano que Sam toca no Rick's Café. Esse foi comprado à Hollywood Piano Company e, tanto quanto se sabe, continua a ser um dos grandes atractivos da exposição permanente do museu da Warner Brothers. De resto, o instrumento que agora será levado à praça é descrito pela própria Sotheby's como “Casablanca's Iconic Piano From La Belle Aurore”. Ou seja, o piano usado no flashback parisiense, quando Sam toca As Time Goes By para Lisa e Rick num acolhedor restaurantezinho de Paris, enquanto um altifalante anuncia no exterior a iminente chegada das tropas nazis. A informação da leiloeira é correcta, mas o facto de não referir a existência de um segundo piano no mesmo filme facilita o equívoco. 

Os dois pianos são bastante parecidos, em dimensão e formato, mas o segundo é um pouco mais decorativo. E teria sido plausível, na verdade, que Michael Curtiz tivesse utilizado o mesmo piano em ambas as cenas, já que não precisava de transportar o instrumento de França para Marrocos em plena segunda guerra. Uma vez que, com o auxílio de material de arquivo, o filme foi praticamente todo rodado em estúdio, incluindo as cenas de Paris e Casablanca, teria bastado levar o piano de um cenário para outro.

Já saber qual dos dois pianos do filme é, afinal, o mais icónico, é uma pergunta sem resposta fácil. Em certo sentido, o que é verdadeiramente icónico é “o piano” de Casablanca, indiferentemente representado por um ou outro. Ambos são tocados pela inesquecível figura de Sam, ou, para ser mais preciso, parece que são, já que Wilson se limita a fazer de conta que toca. A música que se ouve no filme é a gravação de uma interpretação de Elliot Carpenter, que também colaborou na rodagem. O realizador colocou-o atrás de uma cortina, para que a câmara não o apanhasse, mas Wilson pudesse vê-lo a tocar piano e conseguisse ir copiando os movimentos das suas mãos.

Diga-se, no entanto, para que o mito não se desmorone de todo, que é mesmo Wilson quem canta As Time Goes By, um tema composto em 1931 por Herman Hupfeld. Antes de chegar a Hollywod, o actor fora vocalista e baterista de uma banda que ele próprio liderava e que fizera digressões em Londres e Paris nos anos 20. Wilson conhecia bem a verdadeira boémia parisiense  de antes da guerra, e não apenas a versão recriada em Hollywood.
 

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